quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Quando entro em transe falo línguas que normalmente desconheço
Texto: Carol Banze
Fotos: Carlos Uqueio
                                      
Soa o som do primeiro batuque; seguem-se as réplicas e, enfim, notas altas e graves compõem uma melodia que se alastra pelo ar, sob a batuta de quatro jovens mulheres que, concomitantemente, entoam um cântico em zulu.
Brados intrigantes soltam-se do interior de uma palhota, a metro e pouco do palco preparado para receber personalidades do além.
Muhlahle e Ntavene, duas matswasanas (aprendizes da medicina tradicional), lindas e jovens mulheres, irrompem palhota afora, de cajados e txowas (artefacto em forma de chicote feito de rabo de cavalo) em mãos e fazem a volta ao quintal que acolhe duas residências: uma, que hospeda habitantes como a gente, e outra, a figuras ocultas.
A nossa reportagem, ardilosamente posicionada, irradia, de segundo a segundo, um olhar por todos os cantos, iniciando a pintura de uma tela cujas figuras principais se demarcam pelo desdobramento de personalidade.
Muhlahle e Ntavene aparecem enformadas de carne e osso, em corpos emprestados. A todo momento emitem sons em idiomas desconhecidos por nós e pela maioria dos espectadores; tremelicam, erguendo os ombros num movimento de baixo para cima; dançam…. Os passos são cadenciados, marcados por pura elegância.
Os seus olhares não se cruzam com os nossos. São perdidos, mas ao mesmo tempo achados pela premente intenção de dizer a que vieram em forma de “espírito”.
                               
Nesse entretanto, uma mulher madura, sisuda, de poucas palavras posiciona-se sentada numa esteira, dando indicações da chegada da hora da saudação. O comando é imediatamente entendido. Muhlahle e Ntavene ajoelham-se perante si, fazem vénias e falam, quase que ininterruptamente em zulu, da sua proveniência e dos seus anseios.
A autoridade máxima do fórum onde nos encontramos acolhe aquelas falas e, de momentos em momentos, orienta o coro, afirmando: ‘thokoza nsila ya yingwe…’.
Dos momentos de transe
às dores da carne
                               
Passados aproximadamente 30 minutos, as duas alunas são atraídas para um compartimento da enorme casa onde, espantosamente, se transformam mais uma vez ao recobrarem a consciência.
Estas mulheres fitam os olhares na nossa equipa de reportagem, esboçam sorrisos….
Neste momento, a nossa intervenção é inevitável: vocês estão diferentes, dizemos, lembram-se do que fizeram há poucos minutos?, perguntamos. Para o nosso espanto, a resposta vem em forma de negação: “Não. O que fizemos? Podem narrar?, pedem-nos, “somente sentimos dores em todo o corpo, cansaço…”, revelam.
Este acaba sendo o grande pretexto para o nosso papo. A nossa intenção é perceber Que mundo é esse onde se geram transformações inexplicáveis, trazendo ao ambiente dos vivos figuras intangíveis materialmente?
Ainda que não encontrássemos uma resposta lógica, o que percebemos é que naquelas circunstâncias, o traje, os adereços, o toque dos batuques, os cânticos conspiravam a favor do mistério. Com efeito, uma das principiantes faz uma analogia, trazendo como elemento comparativo o contexto escolar: “estas roupas equivalem ao uniforme escolar e os cânticos ao hino nacional. Quando se canta o hino, as pessoas reagem ficando em sentido. No nosso caso a reacção é a que vocês viram e nós não temos consciência do que tenha se passado. Pior, nem sequer sabemos falar a língua dos espíritos (no caso o Zulu), apesar de nos momentos de transe articularmos fluentemente esta língua”, garantem. 
                               
A estupefacção da nossa parte cresce ainda mais e Muhlahle e Ntavene são intimadas a contar-nos as suas histórias.
 Segundo narram, tudo começou quando tinham poucos anos de vida. No caso de Ntavene, com apenas 9, sofreu de algumas crises de saúde e de comportamento, que se arrastaram até aos 16 anos. Nessa altura, “adoeci gravemente, a ponto de me levarem a um médico tradicional que revelou que eu tinha espíritos”. A infelicidade da jovem estendia-se pela vida afectiva. Em uma das tentativas de se juntar com o seu então parceiro para formar um lar, as coisas não deram certo, pois “eu fugia de madrugada e ia parar à casa de um médico tradicional guiada pelos espíritos”, afirma.
Destino pouco aventurado teve, por seu turno, Muhlahle que, aos 5 anos, já dava indicações de que algo precisava ser revisto em si. “Sofri muito de dores que praticamente não sumiam do meu corpo”.
São factos inefáveis que compõem as histórias das nossas personagens. Os seus relatos coincidem, igualmente, no que toca à sua vida escolar.
Ntavene jura que em contexto de sala de aula não captava sequer um número ou uma letra do que o professor ensinava. Já Muhlahle protagonizou uma proeza jamais entendida, ao frequentar e ficar aprovada desde o ensino primário até ao básico, sem pescar absolutamente nada do que o professor falava. “Eu não percebia, mas no dia das provas tirava até 20 valores”, garante. Hoje em dia, não sabe ler, nem escrever. Inclusive o seu próprio nome.
                                   
Já nos chamaram de malucos
- Zulfa Muchanga, de 53 anos, médica tradicional
As dificuldades por que passaram as nossas entrevistadas, antes de cursarem a medicina tradicional, fizeram com que alguns membros da sociedade as considerassem como sendo portadoras de deficiências mentais. Este testemunho é de Zulfa Muchanga, médica tradicional e formadora de iniciantes.
À semelhança de Muhlahle e Ntavene, quando criança, adolescente e jovem não tirou proveito “como devia ser” da carreira escolar. “Eu não percebia o que se falava, o que se escrevia no quadro”. Facto curioso é que, quando o professor se sentia agastado e se insurgia contra esta aluna, havia sempre uma paga: “se levantasse a voz contra mim ou coisa pior, eu me manifestava. O espírito saía, em plena sala de aula”.
Zulfa Muchanga estudou apenas até à 4ª classe. Hoje dedica-se de corpo e alma à medicina tradicional, atendendo os seus clientes/pacientes e formando novos elementos.
Trata-se de uma área que gera muita polémica, conforme afirma, pela interferência de elementos que, nalgum momento, desvirtuam a sua essência. “Quando um indivíduo almeja tornar-se médico tradicional, sem que seja algo natural, o seu trabalho perde peso. Não atinge os objectivos que se pretendem e, consequentemente, não ajuda na íntegra a quem precisa”, observa.
Mas quando se trata de “escolhidos”, tudo flui, garante Muchanga, e segue o curso natural das coisas. Geralmente, “eles (os escolhidos) são xarás, netos ou simplesmente familiares de elementos de uma estrutura familiar que possuíam esses poderes”.
Assim sendo, há uma conexão insubstituível entre tais indivíduos e os seus espíritos, que ajudam no sucesso desta missão, como médicos tradicionais, aclara Zulfa Muchanga.
É por estas e outras que, às vezes, a cura vem através dos sonhos: “em alguns casos, recebemos orientação sobre a existência de uma planta, no mato, que proporcionará a cura. Em casos de dificuldade de localização, ajoelhamos e phahlamos (evocar os espíritos), pedindo que nos mostrem a direcção, e isso acontece. Há também casos em que nos direccionam até determinados lugares para encontrarmos as peças que compõem os tinhlolos (conchas para adivinhação), um privilégio que, dificilmente, quem não tem vocação consegue ter”, afirma.
O orgulho de se tornar uma curandeirinha
                                            
Mércia Massingue é uma menina de 19 anos, solteira, residente em Gaza. É usuária activa das redes sociais. Lá marca o seu espaço, assumindo, com orgulho, o facto de se ter tornado médica tradicional aos 16 anos.
Sem fugir à generalidade, as lides escolares ficaram prejudicadas quando os seus espíritos levaram-na a apartar-se das carteiras, de forma a proceder a alguns ajustamentos. “Na altura, eu estudava na Escola Secundária de Lyonde, Chókwe, frequentava a 10ª classe”, e criava embaraços ao revelar, em pleno ambiente escolar, a vida dos seus colegas. “Falava do que lhes tinha acontecido nos dias anteriores ou do que lhes aconteceria no futuro. Tinha manifestações (de espírito) em plena aula….”.
Na sequência disso, os caminhos indicaram a sua entrada ao mundo da medicina tradicional. Ao chegar, recebeu um quite apropriado composto de capulanas e colares multicolores; cajados, lanças, txowas e outros materiais.
Mércia tornou-se, então, uma nova aluna neste mundo paranormal. “Comecei a aprender a função de cada artigo; dos medicamentos usados para tratar as pessoas; a interpretar os tinhlolos, a fembar e muitas outras coisas”. Num primeiro momento, não viu com bons olhos a guinada que a sua vida tinha dado, pois, “eu tinha os meus planos, queria estudar, formar-me em enfermagem”.
Mas, hoje, sente-se feliz com a nova realidade, até porque “já voltei à minha vida normal; não tenho mais ataques repentinos, desmaios ou outra qualquer complicação, uma vez que os espíritos já foram atendidos. Digo, com orgulho, que sou uma curandeirinha”, afirma. Entretanto, a médica tradicional de praticamente palmo e meio sonha em ter uma família: casar e ter dois filhos. Actualmente, namora e já pensa em regressar às salas de aulas para se formar como enfermeira, concretizando assim o sonho de infância. 
                                          
É um mundo bonito
Estas são palavras de uma professora, formada ao nível da licenciatura, cujo nome e área preferiu ocultar. Doravante, tratamo-la nesta matéria como Clementina, uma mulher madura, que, em primeiro lugar, defende que “não podemos fugir da nossa tradição; somos africanos. Mesmo quando vieram os colonos já tínhamos a nossa tradição. Até os casamentos eram tradicionais, típicos da nossa gente”.
Reservada e de convicções fortes, Clementina não se arrepende de ter respondido ao chamado dos seus antepassados. “É um mundo bonito. Tenho bonitas recordações do momento em que andávamos pelo mato, durante o curso, e cruzávamos com cobras e animais selvagens, sem que nada de perigoso nos acontecesse. Outro facto interessante é que num estado de transe, afirma-se que falo línguas que em condições normais desconheço. Muitas vezes, esta área é conotada com o diabo, mas não é assim. É uma realidade que faz parte de nós, da nossa identidade; o espírito não está na palhota, está em nós, entretanto, existem regras que devem ser seguidas para que a nossa vida corra de feição”.
E é precisamente sobre essa vida que a nossa reportagem se coloca em conversa com a professora. Falamos de um ambiente que, conforme aponta, é também feito de restrições, tanto na alimentação, como na forma de ser e de estar. Em alguns casos, o indivíduo vê-se obrigado a retirar da sua dieta certos alimentos: “pode ser peixe, carne de porco…dependendo da origem dos seus espíritos”. Mas, também, pode em algumas circunstâncias ingerir alguma bebida que, em condições normais, não faz parte das suas predilecções. De qualquer forma, são aspectos que nem de longe se comparam à fase difícil por que passou, na década de oitenta, quando surgiram as primeiras manifestações dos seus espíritos.
Na verdade, explica que, geralmente, tais fenómenos acontecem através de complicações de saúde ou azares na vida. “E tem também as visões estranhas, durante o sono. Aparece uma realidade que se concretiza no dia seguinte; fora os pressentimentos”, enumera.
Para ela, tudo se processa como se houvesse uma informação adiantada do futuro. Em algumas circunstâncias, “a gente olha para alguém e vislumbra um problema”. Foram alguns destes sinais que fizeram com que a sua vida desse uma grande volta.
Preocupados com o desconhecido e estranho, “marquei e frequentei consultas no hospital, com indicação para a neurologia. Eu sofria de insónia, cansaço; não conseguia concentrar-me para dar aulas”. Mas nada surtia efeito, daí que “chegaram a dar-me uma guia para o hospital psiquiátrico”, revela.
Enquanto isso, a vida seguia à medida do possível. Em 1994 concorreu e entrou para Universidade Eduardo Mondlane, mas o processo de Ensino e Aprendizagem não andou às mil maravilhas. Em 1996, veio um diagnóstico. Mediante algumas complicações, “achavam que eu andava a estudar demais. O médico deu-me o papel para parar”.
Mas os problemas de saúde só se agravaram. “Fiquei cega por uns meses; perdi peso excessivamente; fiquei sem trabalhar”. A família ficou mais preocupada ainda e recorreu à medicina tradicional, atropelando todas as suas convicções. Numa consulta, ficaram a saber que, afinal, Clementina fazia parte de uma família “descendente do espiritismo”.
Certo dia, enquanto a professora dormia, um sonho orientador trouxe a chave para a sua vida: “apareceu-me uma luz! No dia seguinte eu disse ao meu pai: ‘papá, vamos a um sítio!’. Ele tentou questionar sobre que lugar seria esse, mas não adiantou. Ao chegarmos, sem que eu tivesse estado lá antes e muito menos conhecido a senhora que nos recebeu, ela disse ‘eu já estava à sua espera’”.
Era uma médica tradicional. Mas, na verdade, esta apenas assumiu a função de tirá-la da doença, tendo ali ficado por 6 meses. Os dias subsequentes, que se somaram até fechar um ano e três meses, foram passados em casa de outra médica tradicional, onde cursou esta medicina. Hoje, leva a vida como quer. Aliás, após a sua formação na área tradicional, voltou a frequentar o seu curso superior, na UEM, tendo concluído na década de 2000.