quinta-feira, 26 de junho de 2025

                 Mamã, Já Não Estás Entre Nós"

No dia 28 de maio de 2025, a minha vida parou. Foi nesse dia que a minha mãe, Maria Ngovene, partiu para sempre precisamente no dia em que completaria 76 anos de vida. O que deveria ser um momento de celebração e gratidão à vida tornou-se um dos dias mais tristes da minha existência. Mas a verdade é que Deus já me estava a preparar para aquele momento.

No início de maio, enquanto fazia tarefas domésticas, ouvi claramente uma voz sussurrar aos meus ouvidos:

"Brevemente, estarás a cantar aquela música muito cantada nos funerais."

Sem entender o sentido daquilo, comecei a cantar, num tom baixo, quase automático… mas não dei muita importância. Hoje, olhando para trás, vejo que aquele foi o primeiro sinal

Na manhã da partida da minha mãe, eu estava em missão de trabalho, a cobrir uma sessão parlamentar na qual participava a Primeira-Ministra Maria Benvinda Levi. Subitamente, recebo uma chamada da minha sobrinha Maria, chará da minha mãe  completamente desesperada, aos prantos, sem conseguir articular uma frase inteira. Só repetia:

"Tio Carlos... Tio Carlos..."

O meu íntimo já sabia. Algo em mim dizia que aquele era o telefonema que um dia eu temia receber.

Avisei o assessor de imprensa e os colegas que estavam comigo e fui dispensado. Fui deixar o carro em casa, na Zona Verde da Matola, onde encontrei uma multidão em silêncio à minha espera. A dor já pairava no ar.

Estavam todos à espera que eu levasse o corpo da minha mãe à morgue. Contactei a Funerária Moçambicana, que prontamente removeu o corpo, e seguimos para a Morgue do Hospital Provincial da Matola.


Ali, ao entrar naquele ambiente gelado e impessoal, vivi uma das experiências mais duras da minha vida.Vi corpos sem vida de homens, mulheres e crianças. Uns cobertos, outros expostos… A visão era brutal.Aquelas imagens ficaram cravadas na minha mente e tornaram-se pesadelos recorrentes. Não desejo essa vivência a ninguém.

Foi nesse momento que percebi algo com profundidade:Na morgue, tudo termina. Vaidade, orgulho, mágoas, discussões e até o ódio acabam ali. O que permanece é apenas o corpo, imóvel e silencioso.


É duro ser homem. É duro ser o responsável por conduzir a despedida de quem te deu a vida. Mas fui eu quem cuidou da minha mãe até ao seu último descanso.

Eu entrei na morgue. Vi o seu corpo frio. Logo após deixar o corpo, senti uma dor intensa e inexplicável nos dois braços. Dormi com essa dor e acordei com ela, como se fosse um peso espiritual que o meu corpo carregava.

No dia seguinte, acompanhado pelo  tio Carlos, irmão mais novo do meu pai já falecido, fui à morgue para tratar do processo de óbito. Depois seguimos até ao Cemitério de Lhanguene, o local onde a minha mãe, ainda em vida, pediu para ser sepultada  junto do seu falecido esposo, meu pai.

Após tratarmos da papelada, comentei com o meu chará:

"Já que estamos aqui, por que não levamos um pouco de água para pôr na campa do seu irmão?"

Ele concordou. Comprámos uma garrafa de 5 litros ali mesmo no cemitério.

Ao aproximar-se da campa, o meu chará disse em voz alta:

"Meu irmão querido, estamos aqui para informar que a tua esposa, mãe dos teus filhos, já não está mais entre nós. Segundo a sua vontade, será sepultada aqui ao teu lado, onde repousas em paz."

Eu também me aproximei e, enquanto lavava a pedra mármore da campa, falei:

"Papá, estou aqui para te informar que a mamã já nos deixou. Ela será sepultada aqui, conforme me disse um dia, há muitos anos."

Naquele exato momento, algo milagroso aconteceu:

A dor dos meus braços desapareceu por completo. Como se aquela conversa com os meus pais tivesse trazido alívio ao meu corpo e à minha alma. Até hoje me pergunto o que isso significou. Mas ninguém estava ali para me dar uma resposta.

A minha mãe foi sepultada no dia 4 de junho de 2025. O velório teve lugar no próprio cemitério, com a presença de familiares vindos de Gaza, África do Sul e outras partes. A cerimónia foi conduzida pela Igreja Zion, a mesma onde a minha mãe professava a sua fé. O pastor Bila foi quem dirigiu o culto fúnebre.

Fui eu quem cuidou da minha mãe até ao seu último suspiro terreno. Fui eu quem entrou na morgue e viu o seu corpo estatelado, imóvel, dentro daquela gaveta fria. Mandei preparar o ‘’xiyambalo’’, o vestuário tradicional da igreja que ela tanto respeitava.

Fui eu quem fechou a tampa do caixão.

Fui eu quem leu a última mensagem em nome dos filhos.

 

Mensagem lida no velório e sepultamento da minha mãe

Meus irmãos, familiares, vizinhos e amigos,

Hoje é um dia mais difícil das nossas vidas. Nossa mamã partiu justamente no dia em que completaria 76 anos. Já tínhamos começado a preparar o seu bolo, pensado nas palavras para lhe dizer, no abraço para lhe dar. Mas, em vez de festa, vivemos um luto pesado. Um vazio que tomou conta de tudo.

É difícil aceitar que ela se foi. Difícil entender que aquela que sempre esteve ali, de repente já não está mais. Mas, ao mesmo tempo, olhamos para trás e percebemos que ela nos deixou. Nossa mãe foi mais que uma mãe. Foi coluna, foi chão, foi teto. Foi colo nos dias de tristeza e força nos dias de luta. Nunca se colocou em primeiro lugar. Sempre viveu para nos proteger, orientar e amar.

Ela foi mulher de fé, de trabalho, de coragem. Nos ensinou que a vida não é fácil, mas que com união, paciência e esperança, a gente vence. Suportou dores calada. Sorriu mesmo quando o coração estava cansado. Guardou lágrimas para não nos preocupar. Quantas vezes não percebemos tudo o que ela fazia por nós... e hoje, a sua ausência nos mostra o quanto ela era tudo.

Partir no dia do próprio aniversário… isso não é por acaso. É como se Deus quisesse mostrar que ela fechou o ciclo da vida com honra. Que cumpriu a sua missão até o fim. Foi chamada para celebrar a data no céu, onde não há dor, nem lágrima, nem sofrimento. Lá, onde os justos descansam.

A dor que sentimos é profunda. Mas também é profundo o amor, a gratidão e o orgulho de termos sido filhos de uma mulher tão especial. Cada um de nós carrega algo dela. Um jeito, uma palavra, uma lembrança. E isso, ninguém pode tirar.

Mãe, o bolo que prepararíamos hoje virou altar de saudade. As velas que acenderíamos em festa agora são orações para tua paz. Mas mesmo em meio à dor, te agradecemos por tudo. Pela vida, pela criação, pelos conselhos, pelos castigos com amor, pelos carinhos silenciosos, pelas noites acordadas por nossa causa. Te agradecemos por teres sido mãe com todas as letras.

Descansa, nossa rainha. Teu nome está escrito dentro de nós, para sempre.

Vai em paz, que aqui continuaremos unidos, como a senhora sempre quis.
E no meio do pranto, seguimos com a certeza: um dia, nos encontraremos de novo.

Amém.

 

                          FUNCHO


O homem por trás da
lente da independência
Fotos: #joaocosta
Publicado no Jornal Domingo 22/06/2025
Ao celebrarmos os 50 anos da independência de Moçambique, é imprescindível olhar para as imagens que, ao longo dessas cinco décadas, ajudaram a contar a história de um país em transformação. Poucos nomes são tão emblemáticos nesse registo visual como o de João Costa, conhecido simplesmente como ‘’Funcho’’. Sua lente não apenas capturou momentos decisivos da história moçambicana, mas também reflectiu as emoções, as lutas e as esperanças de um povo. Este é um olhar que vai além da técnica fotográfica: é um verdadeiro testemunho da alma de uma nação. Mas, afinal, quem é o homem por trás das lentes?
“Fora da fotografia e fora das lentes… é difícil responder. Sou fotógrafo, isso é certo, sou uma referência para muitos, mas sinto medo do que ainda devo fazer mais,” confessa ‘’Funcho’’, com a humildade dos grandes mestres.
Nascido em Viana do Castelo, Portugal, em 1951, Funcho chegou a Moçambique ainda bebé, com apenas seis meses de vida. O solo de Nampula, onde cresceu até os 14 anos, foi seu primeiro chão, onde pisou nos braços da mãe. Em seguida, mudou-se para então Lourenço Marques, onde começaria a moldar seu destino.
Estudante da universidade Lourenço Marques, iniciou na engenharia, mas o 25 de Abril e as mudanças do mundo o desviaram para o seu verdadeiro chamado: a fotografia.
“Minha paixão pela imagem começou com meu pai. Ele tinha uma máquina fotográfica que eu respeitava e, ainda criança, já tentava registar momentos com ela. Mas foi na universidade, trabalhando na associação académica, que comecei a levar a fotografia a sério,” lembra.
A primeira câmara profissional veio de uma surpresa do avô, que vivia no Japão. Era uma Nikon que marcaria o início de uma trajectória longa e dedicada. Funcho conta que trabalhou como fotógrafo na Faculdade de Medicina da Universidade de Lourenço Marques, produzindo imagens para pesquisas médicas e aulas, enquanto ainda era estudante.
Foi também repórter fotográfico para o jornal A Voz de Moçambique, da Associação dos Naturais, antes de seguir para o Jornal Notícias em 1974, ano em que a liberdade começava a despontar.
“Fui enviado para a Tanzânia para acompanhar a viagem do presidente Samora Machel, pouco antes da independência, em 1975. Estive presente na proclamação da independência no Estádio da Machava, capturando a alegria das pessoas naquele momento histórico,” conta Funcho.
Mas a fotografia, para ele, nunca foi só trabalho. Era paixão, era sustento, era vida. Mesmo diante da pouca valorização e dos meios escassos, quando os jornais publicavam imagens escuras, sem contraste e de baixa qualidade, ‘’Funcho’’ nunca abandonou a câmara.
“A fotografia não enriquece, mas dá vida. É o que me permitiu seguir em frente,” diz com um sorriso que carrega a marca do esforço.
No Instituto Nacional de Cinema, onde ingressou em 1977, continuou a aprimorar seu olhar, mesclando cinema e fotografia. Mas sempre fotografou, sobretudo a política e as figuras que moldaram a história moçambicana.
Fotografou Samora, Chissano, Mandela, Nyerere, Agostinho Neto, entre outros. Relembra, com poesia e realismo, as dificuldades e os desafios de ser fotógrafo em tempos de mudanças profundas: “Ser fotógrafo não era fácil. Não éramos levados a sério; éramos o segundo plano. E até hoje, essa luta continua. A mentalidade sobre a fotografia precisa mudar,” reflecte.
Ele também denuncia as restrições e o preconceito ainda presentes, quando fotografar parece algo proibido, vigiado, controlado. E denuncia a visão do fotógrafo como alguém que só busca dinheiro:
“Quando as pessoas veem a câmera, pensam logo em dinheiro. Mas é mais do que isso. É uma forma de contar histórias, de eternizar momentos,” afirma.
Funcho não hesita em lembrar o papel das imagens que capturou, não só de presidentes, mas de uma nação inteira em transformação, e conclui com um olhar firme, repleto de sensibilidade:
Ao revisitar as imagens de Funcho, percebemos que sua obra é mais do que um simples acervo fotográfico; é um arquivo vivo da memória colectiva moçambicana. Por meio de seu olhar atento e sensível, ele conseguiu eternizar a essência de um povo, suas vitórias, seus desafios e suas esperanças. Em tempos de rápidas transformações, o legado de Funcho nos lembra que a fotografia é, acima de tudo, um poderoso instrumento de preservação histórica e cultural. Ele não é apenas o homem por trás das lentes, mas um verdadeiro guardião da identidade moçambicana, alguém cuja paixão e compromisso com a imagem continuam a inspirar novas gerações.
Fotojornalista defende que a mentalidade sobre a fotografia deve mudar.























sábado, 21 de junho de 2025

 Deixem-me Fotografar!

Por Carlos Uqueio

Ser repórter fotográfico em Moçambique é, muitas vezes, um caminho solitário e cheio de obstáculos. Desde o início da minha carreira, tenho percorrido ruas, becos, mercados, bairros e praças com o objectivo de registar a vida como ela realmente é. Com a minha câmara, tento contar histórias do nosso povo. Histórias que não aparecem nas manchetes, mas que dizem muito sobre quem somos enquanto nação. Tento mostrar a alegria, a dor silenciosa, as conquistas invisíveis e as desigualdades que gritam em silêncio. No entanto, fazer este trabalho tornou-se, cada vez mais, uma luta constante.

Frequentemente, ao fotografar em locais públicos, sou abordado por pessoas com um  olhar assustador e palavras duras. Há quem pense que estou a invadir a privacidade dos outros ou a tirar proveito de suas imagens. Já me acusaram de estar a lucrar às custas da dor alheia, perguntando: “Vais vender a minha foto, não é?” ou exigindo que eu pague para fazer uma simples fotografia num espaço que pertence a todos. Já me disseram claramente que só poderia continuar a fotografar se deixasse algum valor, como se as ruas e praças fossem propriedade privada.

Essas situações revelam dois problemas graves. O primeiro é a falta de conhecimento sobre o papel do fotógrafo jornalístico na sociedade. O segundo é o crescimento de um ambiente hostil, de medo e agressividade, contra quem tenta mostrar a realidade do país através da imagem. E quando o medo fala mais alto que a empatia, perdemos todos. Porque uma sociedade que desconfia dos seus próprios contadores de histórias acaba por viver com os olhos fechados para a sua própria realidade.

O repórter fotográfico não é um intruso. Não é um ladrão de imagens, nem um espião da dor alheia. É um profissional que escolheu servir a verdade através do olhar. Com a câmara, procuramos documentar o que acontece no presente para que não se apague no futuro. Registamos momentos que, por vezes, ninguém quer ver, mas que são fundamentais para que se pense, se mude e se avance.

É essencial lembrar que os espaços públicos são de uso colectivo. Fotografar numa rua, num mercado, numa praça ou num transporte não deveria ser um acto proibido ou suspeito. Claro que é importante agir com ética e respeito. Quando se trata de retratos mais próximos, de rostos e expressões, o diálogo é necessário. A sensibilidade é parte do nosso trabalho. Mas ameaçar um fotógrafo, exigir dinheiro ou impedi-lo de trabalhar apenas por estar a cumprir a sua missão é uma forma de violência simbólica. E essa violência precisa ser discutida.

O que falta é educação cívica, visual e cultural sobre o valor da fotografia no jornalismo e no processo democrático. Muitas pessoas ainda não compreendem que a presença de um repórter fotográfico pode significar visibilidade para problemas esquecidos, reconhecimento para lutas locais, valorização de culturas e tradições. O repórter fotográfico é  um aliado importante na construção de uma sociedade mais justa e informada.

Quantas imagens, ao longo da história, mudaram leis, acordaram consciências e provocaram lágrimas sinceras? Quantas fotografias fizeram o mundo parar e olhar para aquilo que estava a ser ignorado? Muitas dessas imagens só existem porque alguém teve a coragem de estar presente com uma câmara na mão, mesmo sendo insultado, expulso ou ameaçado. E esse alguém podia ser eu. E tantas vezes, é mesmo.

Por isso, escrevo este apelo com o coração e a responsabilidade de quem acredita na força do que faz. Deixem-me fotografar. Respeitem o meu trabalho, mesmo que não o compreendam totalmente. Não me silenciem com desconfiança nem me afastem com intimidações. A câmara que levo comigo é muito mais que um equipamento: é uma extensão do meu compromisso com a verdade, com a história e com as vozes que precisam ser ouvidas.

Respeitar o repórter fotográfico é respeitar a verdade.