sexta-feira, 23 de maio de 2025

 Um “demónio” chamado: AVIATOR


Por: Carlos Uqueio

Numa era em que tudo cabe na palma da mão, da amizade à fé, do trabalho ao prazer, o vício também encontrou abrigo ali. O jogo de azar, que antes exigia portas pesadas de casinos e noites escondidas entre copos e fumaça de charrutos, agora se apresenta polido, colorido e sedutor nos nossos próprios telefones. E entre esses jogos, há um nome que tem feito estragos profundos em silêncio: Aviator.

Pode parecer apenas mais um aplicativo. Um avião que sobe e, quanto mais sobe, mais dinheiro promete ao apostador. A ilusão é simples: se clicar para "sacar" antes que ele caia, o jogador lucra. Mas se errar o tempo, perde tudo. Um jogo de reflexo, dirão alguns. Um passatempo. Mas quem já caiu nessa pista sabe que o Aviator não é jogo, é vício travestido de distração, um plano bem desenhado para aprisionar.

Conheci essa tragédia de perto. Um amigo meu, empreendedor humilde, montou um pequeno bar na zona. Contratou uma funcionária que parecia promissora. Para proteger o lucro diário, colocou um cofre e confiou a ela a tarefa de guardar o dinheiro ao fim de cada dia. Com boa-fé, atendeu ao pedido da empregada: que não aparecesse com frequência, pois ela queria lhe “surpreender” com altos lucros. O patrão acreditou. O tempo passou. E então, um dia, ele decidiu visitar o bar.

A cena que encontrou parecia saída de um filme de horror: prateleiras vazias, geleiras sem bebidas, o cofre arrombado, e a única coisa cheia era a vergonha no rosto da colaboradora. Ela, aos prantos, confessou:
“Boss, me perdoa... usei o dinheiro do bar para jogar Aviator. Fiquei viciada, achei que ia ganhar tudo de volta, mas, perdi.”

O prejuízo era maior do que o esperado. Todo o lucro acumulado tinha desaparecido. Não havia mais capital para repor o stock, pagar os fornecedores, cobrir as dívidas e reerguer a estrutura. Em poucas semanas, o negócio que levou anos para ser erguido teve de fechar as portas. O bar faliu. Literalmente. E não por falta de clientes ou má gestão, mas por causa de um jogo que, sorrateiramente, consumiu tudo.

Essa não é uma história rara. É uma epidemia digital silenciosa. O Aviator e seus semelhantes exploram o desejo humano pelo ganho fácil, pela sorte, pela superação das dificuldades financeiras num piscar de olhos. Mas não passam de armadilhas. Jogar parece simples. Começa com 100 meticais, depois 500, depois 1.000. E quando se dá por conta, não foi só o dinheiro que se perdeu: foi a paz, a sanidade, a confiança de alguém, o emprego, a dignidade e, como neste caso, o negócio inteiro.

Não se trata apenas de condenar o jogo. Trata-se de entender o mecanismo perverso por trás dele. O Aviator não premia estratégia. Ele manipula emoções. Alimenta a esperança e o desespero num mesmo clique. Cada rodada perdida carrega a promessa de que a próxima será a da sorte. É um ciclo vicioso, e como todo vício, ele começa pequeno, sedutor, e termina grande, devastador.

O problema, porém, não é só individual. É colectivo. Falta educação financeira nas escolas. Falta diálogo nas famílias sobre o perigo do lucro fácil. E sobra silêncio. O silêncio da vergonha de quem perdeu tudo, o silêncio de quem tem medo de admitir que está preso, o silêncio de uma sociedade que normaliza o vício.

É urgente educar. Precisamos ensinar aos jovens e também aos adultos que não existe riqueza sem trabalho. Que o dinheiro fácil, muitas vezes, cobra caro. Que toda aposta tem dois lados, e quase sempre quem ganha é a plataforma, não o jogador. Precisamos falar sobre controle o emocional, autocontrole, sobre a importância de pedir ajuda antes que seja tarde.

E, acima de tudo, precisamos resgatar a confiança nas formas honestas de crescimento. Trabalhar, poupar, investir com sabedoria, aprender a empreender. O jogo pode parecer uma solução rápida, mas é uma armadilha lenta. E o Aviator não leva ninguém para o céu, ele só ensina a cair, e cada queda é mais dolorosa que a anterior.

Se você está lendo este texto e conhece alguém que está a jogar demais, não o julgue. Converse. Oriente. Mostre que o buraco é real, mas que também é possível sair dele. Se você mesmo está preso nesse ciclo, entenda: pedir ajuda não é fraqueza, é o primeiro acto de liberdade.

O Aviator pode até decolar rápido, mas o pouso, quase sempre, é em ruínas. E nenhum sonho merece ser trocado por uma ilusão que termina em falência.

 

segunda-feira, 12 de maio de 2025

            Estátua de carne, alma de prata

Publicado no Jornal Domingo 11/05/2025
Em cada avenida da cidade de Maputo, há quem anda sempre apressado. carros “fast and furious”, vozes em alta frequência, corpos a correr atrás do sustento, do sonho, da sobrevivência. Mas no meio dessa coreografia urbana que não cessa, uma figura resiste ao movimento. Com os pés plantados na calçada e o olhar fixo no infinito, uma jovem mulher quebra todas as regras da pressa que caracteriza o quotidiano actual.
Ela está parada. E é exactamente por isso que se torna impossível não notá-la.
Seu nome é Misé Amarchande, tem 26 anos, vive no bairro de Infulene, zona da Manduca, no município da Matola. Encontrou na imobilidade uma forma de expressão. No meio do caos, ela é o silêncio que fala, a estátua viva que emociona. A sua arte não se aprende em manuais: nasce do peito, atravessa o corpo e se impõe no espaço público como um grito silencioso.
“Sou ousada, atrevida, não tenho medo de arriscar”, afirma, com uma convicção que não cabe em molduras.
Antes de vestir-se de prata para as ruas, Misé já tinha trilhado outros palcos. Modelo, actriz e mestre de cerimónias. A jovem sempre foi uma intérprete da vida. Mas foi no silêncio absoluto da performance estática que ela encontrou o seu verdadeiro palco. Após quatro anos longe das performances como estátua humana, decidiu voltar. A inspiração veio de uma inquietação pessoal: ela via homens a dominarem as ruas com esse tipo de performance, mas sentia falta da presença feminina.
“Fizemos dois dias de testes com o ‘Jovem Puro’, meu parceiro nesta jornada. E percebi que ainda tinha o equilíbrio, a concentração, o fôlego. Então voltei”, recorda.
Voltou com força. Não apenas com presença física, mas com uma energia que atravessa o cimento e alcança o coração dos que passam. E se para alguns ela é um detalhe estranho na paisagem, para outros é arte pura, coragem em estado sólido.
Ficar imóvel durante três horas seguidas, sem pestanejar, é mais do que resistência física, é um estado espiritual. Misé não apenas se cala: ela convoca silêncios.
O mais surpreendente é que ela nunca fez um curso específico. “O equilíbrio vem de mim mesma, do amor pela arte. Não aprendi isso com ninguém. É algo que me atravessa.”
Desafia o cansaço, o calor, a humidade e até à chuva. “Já actuei duas vezes debaixo de chuva. É o amor que me dá estabilidade. Mesmo quando tudo parece contra, o coração está firme”.
Há algo profundamente revolucionário em ver uma mulher ocupar, com tanta presença, o espaço público por meio do silêncio. Num país e num continente onde o corpo feminino tantas vezes é silenciado à força, Misé opta por silenciar-se voluntariamente, transformando esse gesto num acto de poder.
“As pessoas não acreditam que sou mulher. Dizem que esse é um trabalho pesado, que é coisa de homem. Mas isso só me dá mais força. Gosto de mostrar que podemos tudo.”
E pode mesmo. O público, principalmente as mulheres, aplaudem de coração. “O carinho das mulheres é especial. Saber que estou a inspirar outras mulheres, que elas se sentem representadas por mim, é uma das minhas maiores vitórias”.
A jornada de Misé começa quando o dia ainda está em silêncio. Acorda às quatro da manhã. Às cinco e meia, já está a caminho do ponto de encontro com o seu colega, “Jovem Puro”. Às seis, está em posição. Escolhe os lugares com cuidado: ruas movimentadas, praças com gente, cruzamentos onde a vida urbana acontece.
No palco improvisado de cimento e buzinas, ela assume a sua pose. E ali permanece. Enquanto tudo gira à sua volta, ela firma-se como farol.
A avó, curiosa e carinhosa, espera sempre que Misé chegue para ver as fotos do dia. A família não apenas aceita: acredita no seu caminho. É com eles que encontra o seu equilíbrio emocional.
Apesar de ainda não ser casada nem ter filhos, ela diz ter um lar cheio de amor e incentivo. “Toda a minha família acredita que vou longe com isto. E eu também acredito”.
Nas ruas, Misé convive com extremos. Há quem se encante, quem sorria, quem agradeça. Crianças que tentam imitá-la. Senhoras idosas que pedem uma foto, emocionadas. Olhares que se derretem em admiração.
Mas há também o outro lado. A ignorância, o preconceito. Homens que gritam das janelas dos carros: “Vai trabalhar, sua preguiçosa!”
“As pessoas não sabem o quanto é difícil manter-se imóvel por horas. Acham que estou ali a fazer nada. Mas tudo bem. Eu sei o que estou a fazer. E isso basta”.
Mesmo quando não responde a ninguém, mesmo quando não se move, Misé leva essas histórias para casa. Guarda os sorrisos, transforma os insultos em força.
Ela não se explica: ela existe. E isso já é bastante.
O seu sonho é internacionalizar-se. Mostrar ao mundo que Moçambique não é apenas terra de luta e sol escaldante, mas também berço de arte viva.
“Quero que o mundo veja que nós, moçambicanos, também podemos. Que também temos arte. Que também temos voz. Mesmo quando ela é muda”.
Nas ruas de Maputo, há uma mulher que permanece de pé. Não por teimosia, mas por fé. Fé em si mesma, na arte, e no poder de tocar corações com o corpo imóvel e a alma em chamas.
“Se tens um sonho, não esperes por apoio. Sê a tua própria iniciativa, sê a tua luz. Só nós podemos fazer por nós mesmos. E, quando fizeres por ti, os outros vão reconhecer e valorizar-te”.