segunda-feira, 12 de maio de 2025

            Estátua de carne, alma de prata

Publicado no Jornal Domingo 11/05/2025
Em cada avenida da cidade de Maputo, há quem anda sempre apressado. carros “fast and furious”, vozes em alta frequência, corpos a correr atrás do sustento, do sonho, da sobrevivência. Mas no meio dessa coreografia urbana que não cessa, uma figura resiste ao movimento. Com os pés plantados na calçada e o olhar fixo no infinito, uma jovem mulher quebra todas as regras da pressa que caracteriza o quotidiano actual.
Ela está parada. E é exactamente por isso que se torna impossível não notá-la.
Seu nome é Misé Amarchande, tem 26 anos, vive no bairro de Infulene, zona da Manduca, no município da Matola. Encontrou na imobilidade uma forma de expressão. No meio do caos, ela é o silêncio que fala, a estátua viva que emociona. A sua arte não se aprende em manuais: nasce do peito, atravessa o corpo e se impõe no espaço público como um grito silencioso.
“Sou ousada, atrevida, não tenho medo de arriscar”, afirma, com uma convicção que não cabe em molduras.
Antes de vestir-se de prata para as ruas, Misé já tinha trilhado outros palcos. Modelo, actriz e mestre de cerimónias. A jovem sempre foi uma intérprete da vida. Mas foi no silêncio absoluto da performance estática que ela encontrou o seu verdadeiro palco. Após quatro anos longe das performances como estátua humana, decidiu voltar. A inspiração veio de uma inquietação pessoal: ela via homens a dominarem as ruas com esse tipo de performance, mas sentia falta da presença feminina.
“Fizemos dois dias de testes com o ‘Jovem Puro’, meu parceiro nesta jornada. E percebi que ainda tinha o equilíbrio, a concentração, o fôlego. Então voltei”, recorda.
Voltou com força. Não apenas com presença física, mas com uma energia que atravessa o cimento e alcança o coração dos que passam. E se para alguns ela é um detalhe estranho na paisagem, para outros é arte pura, coragem em estado sólido.
Ficar imóvel durante três horas seguidas, sem pestanejar, é mais do que resistência física, é um estado espiritual. Misé não apenas se cala: ela convoca silêncios.
O mais surpreendente é que ela nunca fez um curso específico. “O equilíbrio vem de mim mesma, do amor pela arte. Não aprendi isso com ninguém. É algo que me atravessa.”
Desafia o cansaço, o calor, a humidade e até à chuva. “Já actuei duas vezes debaixo de chuva. É o amor que me dá estabilidade. Mesmo quando tudo parece contra, o coração está firme”.
Há algo profundamente revolucionário em ver uma mulher ocupar, com tanta presença, o espaço público por meio do silêncio. Num país e num continente onde o corpo feminino tantas vezes é silenciado à força, Misé opta por silenciar-se voluntariamente, transformando esse gesto num acto de poder.
“As pessoas não acreditam que sou mulher. Dizem que esse é um trabalho pesado, que é coisa de homem. Mas isso só me dá mais força. Gosto de mostrar que podemos tudo.”
E pode mesmo. O público, principalmente as mulheres, aplaudem de coração. “O carinho das mulheres é especial. Saber que estou a inspirar outras mulheres, que elas se sentem representadas por mim, é uma das minhas maiores vitórias”.
A jornada de Misé começa quando o dia ainda está em silêncio. Acorda às quatro da manhã. Às cinco e meia, já está a caminho do ponto de encontro com o seu colega, “Jovem Puro”. Às seis, está em posição. Escolhe os lugares com cuidado: ruas movimentadas, praças com gente, cruzamentos onde a vida urbana acontece.
No palco improvisado de cimento e buzinas, ela assume a sua pose. E ali permanece. Enquanto tudo gira à sua volta, ela firma-se como farol.
A avó, curiosa e carinhosa, espera sempre que Misé chegue para ver as fotos do dia. A família não apenas aceita: acredita no seu caminho. É com eles que encontra o seu equilíbrio emocional.
Apesar de ainda não ser casada nem ter filhos, ela diz ter um lar cheio de amor e incentivo. “Toda a minha família acredita que vou longe com isto. E eu também acredito”.
Nas ruas, Misé convive com extremos. Há quem se encante, quem sorria, quem agradeça. Crianças que tentam imitá-la. Senhoras idosas que pedem uma foto, emocionadas. Olhares que se derretem em admiração.
Mas há também o outro lado. A ignorância, o preconceito. Homens que gritam das janelas dos carros: “Vai trabalhar, sua preguiçosa!”
“As pessoas não sabem o quanto é difícil manter-se imóvel por horas. Acham que estou ali a fazer nada. Mas tudo bem. Eu sei o que estou a fazer. E isso basta”.
Mesmo quando não responde a ninguém, mesmo quando não se move, Misé leva essas histórias para casa. Guarda os sorrisos, transforma os insultos em força.
Ela não se explica: ela existe. E isso já é bastante.
O seu sonho é internacionalizar-se. Mostrar ao mundo que Moçambique não é apenas terra de luta e sol escaldante, mas também berço de arte viva.
“Quero que o mundo veja que nós, moçambicanos, também podemos. Que também temos arte. Que também temos voz. Mesmo quando ela é muda”.
Nas ruas de Maputo, há uma mulher que permanece de pé. Não por teimosia, mas por fé. Fé em si mesma, na arte, e no poder de tocar corações com o corpo imóvel e a alma em chamas.
“Se tens um sonho, não esperes por apoio. Sê a tua própria iniciativa, sê a tua luz. Só nós podemos fazer por nós mesmos. E, quando fizeres por ti, os outros vão reconhecer e valorizar-te”.

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