Caos, fome e desespero
nas ‘colónias’ de Maputo
Texto:Pretlerio Matsinhe
Fotografia:Carlos Uqueio
Publicado in Jornal domingo,Janeiro de 2022
As sapatilhas de cor preta e branca de Sérgio Carlos, 39 anos de idade, baloiçam num dos ramos da pequena árvore e fortificam a sombra que tanto precisa para enganar o sol de Verão. A lata velha foi improvisada para servir de banco e a sua coluna encontra o conforto no tronco da pequena árvore que distribui o pouco de sombra. Sérgio Carlos franze a testa e revira os olhos vermelho-castanhos. Do seu interior, escapa um grito de socorro: “Estou doente, acabo de fazer uma cirurgia”, diz-nos, levantando a camisa para apontar o tubo que atravessa o seu corpo.
Vive na “colónia” sita na Avenida Marginal, bem ali na pequena mata depois do luxuoso hotel Southern Sun, a alguns metros da primeira rotunda da avenida.
Popularmente se designa por “colónias” ajuntamentos informais improvisados em ruínas
de edifícios abandonados e espaços abertos. Nelas vivem pessoas de todas as idades, incluindo famílias compostas – mãe, pai e filhos.
Sérgio Carlos, oriundo do distrito de Xai-Xai, esteve na África do Sul a trabalhar como mecânico. Como imigrante ilegal, foi deportado. Preferiu aportar na cidade de Maputo, isso em 2009. A vida seguiu, mas nos últimos 4 anos, tudo mudou. Perdeu o emprego. Começou a vender latas e foi viver na “colónia” da Marginal.
Aprendeu a pescar, tem o seu próprio barco, facto que aumenta a sua renda. Mas nos últimos cinco meses, a desgraça duplicou-se na sua vida: começou a ter problemas de saúde. Foi ao hospital e lhe foi dito que era algum problema relacionado com os rins.

Sérgio Carlos tinha dificuldades de urinar, fez uma cirurgia e agora alivia-se através de um tubo que atravessa o seu corpo. Sente dores, mas o pior é saber que já não pode ser o mesmo: não tem mais força para se lançar ao mar e buscar peixe, não tem mais fôlego para catar latas e vender, falta-lhe dinheiro para adquirir medicamentos prescritos pelo hospital. “Nunca mais foi fácil. Para conseguir os 450 Meticais para medicamentos, é um desespero”, para não falar das vezes que a polícia aparece naquele lugar em perseguição de algum bem roubado. “Somos sempre suspeitos de qualquer roubo. E é natural, desconfia-se de qualquer um que viva na rua”.
Apesar das dificuldades, a vida deu a Sérgio Carlos uma alegria. “Eu e a Stela vivemos juntos, ela cuida de mim, tenho lá muita sorte”.
Naquele espaço não só mora Sérgio e Stela. Estão lá Aniceto Manhique, Robby Orlando, Inoque João, entre outros.

Noutros cantos da cidade, há mais ajuntamentos: na Praça 25 de Junho, na baixa da cidade de Maputo, vivem ali mais de 20 pessoas; atrás do Mercado do Povo, há outro grupo, entre tantos que sobrevivem nos diversos escombros e prédios abandonados da capital moçambicana.
É gente ida de todos os cantos do país, gente que um dia ergueu a cabeça, abandonou as zonas de origem em busca do pão para sobreviver. Gente que sonhou que na metrópole a vida podia ser diferente. Nas “colónias” onde residem, não existe nada, falta tudo, desde comida, roupas, água, casas... A única coisa que sobra é um pingo de esperança por dias melhores.
O Robby sonha com a vida militar; a Stela encontra nos seus dois filhos que vivem num dos centros de acolhimento a força para levantar todos os dias; o Aniceto que ainda escuta a voz dos seus pais e deseja vê-los de novo; o Inoque que só pensa em acordar e sentir o aroma de sua gente de Quelimane a andar de bicicletas.
A reportagem do domingo foi até eles, visitou-os em duas “colónias” localizadas na cidade de Maputo. Conta histórias daquelas pessoas que não têm muito na vida, mas guardam a esperança de um dia melhor.
Sonho Servir a Nação
Robby Orlando, 39 anos, chegou à capital do país em 2008, ido da Zambézia, distrito de Mocuba. Viveu no bairro da Mafalala, aprendeu a montar ar-condicionados e teve um emprego que lhe ajudou a manter vivo o sonho de conquistar coisas em Maputo. Mas, nos últimos 4 anos, as coisas mudaram: Perdeu o emprego. Sem dinheiro para continuar a pagar a renda, viu-se jogado à rua a mercê da própria sorte. Procurou alternativas, mas nada resultou.
Iniciou a actividade de recolha e venda de latas e garrafas. Foi nessas andanças que conheceu gente que vive na “colónia” da Marginal. Sem horizontes, foi lá se instalar. Improvisou uma residência, material precário, feito de sacos plásticos, pequenas estacas; não tem mais de 0,90 metro de comprimento e a largura não deve chegar a 1,5 metro, tal como a maioria das casas daquele lugar.
No seu interior apenas cabem as suas vestes, as latas que também usa para confeccionar alimentos nos dias que há, caixotes no chão que igualmente servem de mantas. Não há casa de banho, o fecalismo à céu aberto é inevitável. Banho é feito num pequeno charco que se formou, graças às águas da baía do Maputo; para o consumo tem de pedir socorro aos guardas que trabalham nos condomínios arredores.
Mas, apesar das adversidades, Robby resiste. Sentado à entrada da sua casa, tem um pequeno guarda-chuva que usa para esconder a cabeça do sol intenso que assola a capital moçambicana. Mexe a panela com uma mão, com a outra segura um cigarro. “Já não fumo muito, só quatro cigarros/dia, não é nada grave”, diz-nos.

Robby não deixou nada na Zambézia. Perdeu os pais, ainda não tem filhos, e tudo que neste momento sonha é uma oportunidade para estar no exército e servir o país. “Submeti os documentos e se tiver sorte próximo ano irei ao treinamento militar. Tenho fé. Porque aqui a vida não é fácil. Um dia tem comida, noutro dorme-se de barriga vazia. Não vale a pena, o negócio que faço nem dá dinheiro, mas não devo parar. Nunca”.
AS MINHAS CRIANÇAS ...
Stela Wilson, 31 anos de idade, também vive na “colónia” da Marginal há cinco meses. Há pouco tempo se juntou ao Sérgio Carlos e vai levando a vida como pode. Diz que passa dificuldades, tem medo de morar rodeada de homens, apesar de nunca ter sofrido nenhum tipo de violência; o que mais lhe dói neste momento é viver longe dos filhos. “Foram levados pela segurança social para um centro de acolhimento. As minhas duas crianças sim, fazem muita falta, o resto, a gente vai inventando aqui”.
“Meu sonho é que estudem e possam crescer saudáveis”, relata, enquanto acaricia uma edição da Revista Avon. “Gosto de maquilhagem, é algo bonito, mas aqui temos falta até de água, imagina essas coisas. Não incomodamos a ninguém. Apenas tentamos viver”.
Conta que foi parar na rua porque perdeu a irmã, que lhe garantia o sustento. “Agora é só tentar encontrar algum trabalho para sair desta vida. Ter uma casa é tudo, o resto aguenta-se”.
Só quero ver os meus pais
Aniceto Manhique, 23 anos, tem apenas uma certeza: “sinto saudades dos meus pais e quero vê-los”. Nasceu e cresceu na província de Inhambane, deixou a pastorícia para seguir outros caminhos. Quando chegou na capital, trabalhou como ajudante num estaleiro. Mas a crise chegou à bordo do novo coronavírus e viu o seu emprego escapar-lhe.Há mais de um ano que vive na “colónia” da Marginal. Deixou uma namorada, a quem ainda tem a esperança de um dia reconquistar o seu coração. Hoje, remexe os lábios ressequidos, ajeita o chapéu e baixa a cabeça quando se lembra que já nem tem como contribuir em valores monetários para garantir pão na mesa dos seus pais.
“Tudo complicou-se. Já não consigo enviar nada. Aqui se vive um dia de cada vez. Quando amanhece, é só agradecer, na certeza de que se estamos vivos, é porque Deus há-de nos ajudar”, conta-nos.
Ainda assim, os maus momentos não o fazem parar de sonhar. “Sempre quis ser um empresário, ter carros e poder ajudar os meus três irmãos que ficaram em Inhambane. A casa, a casa... faz muita falta”.
Aniceto Manhique diz que a coisa mais difícil é ter de ir à rua pedir comida. “As pessoas pensam que somos malucos. Ser insultado por pedir pão para sobreviver é doloroso”, relata, enquanto aponta para a sua casa, também improvisada com caixotes e estacas de madeira.
“Nos dias de chuva nem vale a pena. Pior porque estamos a viver na praia. E faz muito frio no Inverno, quando chega a ventania, tudo voa”.
Viver aqui com criança é agressivo

Titos Macuvele, 36 anos, divide a sua “barraca” com Helena Moisés, de 27 anos. Os seus caminhos cruzaram-se na praça 25 de Junho, quando procuravam por um lugar para descansar. Titos é oriundo de Inhambane, esteve na África do Sul, mas no ano passado perdeu emprego. No regresso, preferiu experimentar a vida em Maputo. Hoje vive como ajudante de descarregamento de mercadorias no Porto de Maputo.
“Nós vivemos aqui e não temos tido problemas com o município. Quando eles têm as suas actividades, nos avisam e nós levantamos cedo para não atrapalhar”, diz-nos.
Sua esposa, a Helena, tem um filho de 10 meses de vida. A criança está num dos centros de acolhimento da cidade. A mãe sente falta, mas está consciente: “não tenho como. Viver aqui com a criança é agressivo. Agradeço pela oportunidade que tenho de visitá-la”.
ENTRETANTO…

Existem mais famílias e singulares a residirem nos escombros da cidade de Maputo. Para o caso da Praça 25 de Junho, o Município já fez saber que aquele lugar está constantemente a ser invadido por “marginais” e que “mesmo expulsos, sempre retornam”. Contudo, faz parte dos planos da autarquia requalificar o local no quadro das intervenções que vêm tendo lugar ao nível da urbe.
