Um “hotel” para todos os vícios
lVinte pessoas, na sua maioria toxicodependentes, vivem no local, pagando cada cliente vinte Meticais por dia
Por Carlos Uqueio & Hercilia Marrengule
Publicado no jornal domingo-18/06/2023
Entre os becos do quarteirão dez do bairro da Mafalala, na cidade de Maputo, existe uma casa de hospedagem que se destaca tanto pelo preço simpático que oferece aos clientes como pelas facilidades inerentes ao submundo de drogas.
Para “viver” nesta casa, cada morador deve desembolsar, diariamente, vinte Meticais.
OU A MORTE OU A CADEIA
No interior do “hotel”, o vento passa livremente pelos vidros quebrados das janelas e pelos quartos sem tecto. Nas paredes, o que mais chama atenção são os desenhos de folhas da “cannabis sativa”, vulgarmente conhecida por soruma. Na entrada, o que algum dia foi uma porta, agora tem apenas algumas madeiras e pedras que a sustentam não permitindo que alguém, que não conheça o local, entre sem que seja percebido. Não tem móveis.
Neste albergue, os hóspedes ajeitam-se como podem em caixas de papelão ou mesmo em lençóis, num chão sujo e esburacado. São ao todo pouco mais de 20 pessoas. Vivem em total aperto, mas não se importam. Estão reféns de algo que está acima deles: o vício pelas drogas.
Eles não esperam muito do futuro, afinal, “a qualquer momento, podemos ir à prisão, morrer à procura de dinheiro para consumir droga ou por alguma doença. Aqui, fica-se doente. Muito doente... por isso, num abrir e fechar de olhos, pode ser o fim da linha...”, dizem.
São pais, mães, casais, mulheres grávidas e até crianças. Alguns são comerciantes ambulantes, outros vendem no famoso mercado Estrela Vermelha, na cidade de Maputo. Mas existem os mais radicais: roubam, assaltam...
Alguns são de Maputo e os demais de outras províncias com destaque para Gaza e Zambézia.
Há até estrangeiros. Conta-se que, nesta casa, mora um indivíduo de nacionalidade congolesa.
Para “viver” neste imóvel cada morador deve desembolsar, diariamente, vinte Meticais. Outros fazem-no mensalmente, porém, são poucos.
“Alguns nem pagam porque gastam tudo com as drogas”, diz G. Colombo, de 38 anos de idade. Ele é o dono de uma das casas visitadas pelo domingo. Confessa que quando iniciou o negócio a casa estava em melhores condições, mas, quando foi preso, “eles ficaram a vandalizá-la. Venderam tudo para consumir drogas”.
Quando a Reportagem do domingo foi àquele lugar, era manhã de uma quinta-feira. A maioria dos moradores já tinha ido aos seus afazeres, mas outros encontravam-se ainda estatelados no chão num compartimento minúsculo.
“É uma forma de ajudar porque a maioria não tem onde dormir. Muitos viviam na rua”, tenta esclarecer.
Segundo G. Colombo, eles convivem tranquilamente com pessoas do bairro. “Ninguém faz estragos. Se quiserem mexer, saem. Vão mexer longe”, garante.
Colombo conhece-os bem. Ele também é consumidor de drogas. Meteu-se neste mundo influenciado pela ex-mulher. Abandonou o trabalho em obras de construção e oficinas mecânicas. Com os “inquilinos” diz ter uma nova família.
O seu pai não suportou a sua vida. Abandonou-o na casa. Hoje, ele “luta”, diariamente, para conseguir, no mínimo, 200 Meticais para alimentar o vício pela cocaína.
Durante os 12 anos em que está acorrentado às drogas, teve muitas oportunidades para abandoná-las. Desperdiçou-as todas. Aliás, “a droga foi mais forte”, admite.
Vezes há em que tem de recorrer a actos ilícitos para satisfazer o vício. Por causa disso, esteve preso durante um ano e quatro meses...
“SOU COMANDADO POR AQUILO...”
Veio ao mundo das drogas por causa do ambiente. Conforme disse, “é diferente de casa. Eu gosto. Lá, exigiam-me demais. Eu achava que fosse demais. Tinha de ajudar com as despesas. Era muita pressão...”.
Era assim como se sentia A. Paulo, de 43 anos de idade, quando vivia com os seus pais, dois irmãos e duas filhas.
Está naquele “hotel” há seis meses, mas no mundo das drogas vive desde os 19 anos. Começou com a “cannabis sativa”. Agora, consome cocaína e heroína, conhecidas no meio por “rock” e “thay”, respectivamente.
Diz que ali há muita facilidade para se adquirir estupefacientes. Para ele, esta é a razão pela qual muitos preferem lá estar, ainda que em péssimas condições.
“Tem de 50, 100 até de 800. A dosagem depende de cada um. Para mim, diariamente, de 400 Meticais são suficientes”.
Consegue este valor, mas há vezes em que não. Quando isso acontece, chega a ter febres. Confessa que para satisfazer o vício pode fazer coisas erradas. “Roubamos. Assaltamos. Dificilmente faria isso limpo ou quando não estou de ressaca (crise de abstinência). Sou comandado por aquilo...”, refere.
A família sabe que consome drogas, mas as suas filhas não. Afirma que “prefiro estar aqui para não mostrar isso às minhas filhas. Faço de tudo para que elas nunca me vejam assim”.
Arrependido, queria que o tempo voltasse para não atender ao pedido de amigos para experimentar a droga.
“Esse mundo não é fácil. Quando não apanhas o produto não apanhas sono. Ficas acordado, dói tudo, o estômago... é um sofrimento dos grandes”.
VIVE COM UMA CRIANÇA
COM PARALISIA CEREBRAL
“Aos 14 anos comecei a fumar soruma. No mesmo ano, engravidei e o pai dos meus filhos começou a misturar soruma com outras drogas. Comecei a ‘ressacar’. Ele dizia que era aquilo que eu devia fumar. Os meus avós mandaram-me embora de casa”.
V. Manuel tem 23 anos. É mãe de dois filhos, de oito e quatro anos. O mais velho tem paralisia cerebral, aparenta ser um bebé de três meses. Não anda, não senta. Está sempre no colo da mãe.
Estão na casa de Mafalala há um mês. Vive com o seu parceiro há pouco tempo. Antes disso, ele estava preso. A família desembolsa diariamente vinte Meticais para pagar pela estadia, mas nem sempre o conseguem. Ambos não trabalham. Para conseguirem algum dinheiro, confessam, “ele tem de sair para desenrascar cometendo algum crime”.
Aliás, o que conseguem deve ser repartido para a compra do “rock”, do álcool e a alimentação da família. Por isso, “cozinho quando dá”, declara.
Há dois anos e sete meses, V. Manuel parou de consumir estupefacientes, mas bebe álcool. Diz que tem de beber para estar bem. Parou também de se prostituir, por isso, “as coisas ficaram ainda difíceis e fomos mandados embora de onde arrendávamos. Levaram todos os bens”, conta.
Ela assume que a maioria dos residentes da casa é toxicodependente. Reconhece igualmente o ambiente tóxico da casa. Para que os seus filhos não inalem drogas, opta por dormir ao ar livre, o que também é penoso para eles. O mais velho tem as marcas desse sofrimento na pele.
“Não estou aqui porque gosto. Não tenho outra alternativa. O meu filho tem a pele leve, este chão fere-o, por isso tem manchas na pele. Na antiga casa tinha cama, mas não aceitaram que levasse”.
VEIO A CONVITE DA
NAMORADA
Saiu de casa em 2014, mas está no “hotel” da Mafalala há pouco mais de um mês. D. Mavie, de 26 anos de idade, vive ali a convite da namorada.
“Quando saí da prisão não tinha para onde ir. Fiquei preso durante dois anos e dois meses. Fui encontrado na posse de um telemóvel roubado”.
Esta não foi a primeira vez que D. Mavie foi preso. O maior tempo que esteve por detrás das grades foram seis anos. Ainda assim, assume que voltou a cometer crimes. Precisa de satisfazer o vício.
Consome “rock” e “thay”. Por dia, precisa de, no mínimo, 400 Meticais para alimentar o vício. O cenário já foi pior. “Estou a reduzir a quantidade aos poucos porque já percebi que essa vida só tem dois caminhos, a morte ou a cadeia”.
Antes, chegava a gastar, diariamente, cinco mil Meticais. E, para conseguir este dinheiro, roubava tudo o que podia, telefones, perucas...
“Estou a tentar deixar o mundo do crime, mas não é fácil. Não consigo por causa de dores. Agora, quando consigo mil Meticais tiro cem para duas doses e o resto dou à minha mulher ”.
Da sua família, pouco sabe. A única informação que lhe chega é de que a sua mãe não desiste de procurá-lo. Entretanto, confessa, só retornará à casa depois de se livrar das drogas.
PEÇO ESMOLA
A. Mavila, de 16 anos, é um dos consumidores mais novos da casa. Conheceu o local através de amigos. Consome “gira”, uma droga que também lhe foi apresentada por amigos. Mas, antes disso, fumava soruma, em casa.
“A minha tia vendia em casa, no bairro de Bagamoio, na cidade de Maputo. Eu roubava. Depois juntei-me a amigos que também fumavam nas ruas. A minha família só descobriu quando comecei a fumar ‘gira’”, relembra.
A. Mavila vivia com a sua mãe, irmãos e tias. Depois de descoberto, não aguentou a pressão. Fugiu de casa aos 15 anos de idade.
‘’Estava na oitava classe. Não ia à escola, preferia encontrar-me com os meus amigos. Quando a minha mãe descobriu que fumava controlava-me. Falava muito e dizia para deixar”.
Para conseguir cem Meticais para comprar a droga costuma pedir esmola. Para a alimentação, espera a caridade dos demais moradores da casa.
“Às vezes, consigo 150 ou 200 Meticais. Uso todo o dinheiro para comprar droga. Nunca roubei, prefiro pedir”.
Diz que não gosta de viver nestas condições, mas não sabe como voltar porque não consegue mais ficar sem a droga.
“Não quero terminar como as pessoas que estão aqui. Já me levaram para casa duas vezes. Fugi e voltei para aqui. Não consigo ficar longe daqui”, afirma.