sábado, 26 de julho de 2025

 Deuses do Lucro

 

Por: Carlos Uqueio

 

O Mercado Grossista do Zimpeto é muito mais do que um lugar onde se vai comprar cebola, batata ou tomate. É um mundo dentro de outro mundo. Um corpo vivo que respira ao som dos passos apressados, dos gritos dos vendedores e do cheiro da fruta madura. Mas, nesse ambiente intenso e cheio de vida, há também deuses invisíveis. Não são de madeira nem de pedra. São pequenos, silenciosos, mas poderosos: os deuses do lucro.

 

Fui vítima de um deles numa manhã aparentemente comum. Andava entre as bancas à procura da batata, tentando fugir da multidão que se apertava entre sacos e carrinhos de mão. Finalmente escolhi uma banca. O vendedor, com aquele sorriso maroto e voz experiente, disse: “Dê-me 40, 30, 20 meticais para facilitar o troco”. Soou prático. Entreguei o valor exacto. Confiei na pressa. Caminhei mais alguns metros e fui verificar. O troco estava incompleto. Fui enganado. Perdi. E fiquei com aquela sensação amarga de ter alimentado, mais uma vez, os tais deuses que só sabem tirar e nunca dar.

 

A prática é comum. Tornou-se quase rotina. Quem circula por ali frequentemente já aprendeu a desconfiar, a contar o troco na hora, a fazer cálculos duas ou três vezes.

 

Durante uma das limpezas organizadas pelo Conselho Municipal de Maputo, o que veio à tona não foram apenas os restos dos produtos apodrecidos ou os sacos plásticos espalhados no chão. Apareceram também objectos de rituais, garrafas enterradas, “swifungos” esquecidos, materiais místicos usados, dizem alguns que são usados para atrair clientes, garantir vendas e proteger o negócio.

 

Essa mistura mostra que muitos comerciantes já não confiam apenas na qualidade dos seus produtos ou no seu esforço diário. Passaram a depender da força invisível de amuletos e promessas espirituais. Mas há uma linha muito fina entre a fé e o engano. Quando a fé é usada como escudo para justificar atitudes desonestas, ela perde seu brilho. A espiritualidade, que deveria iluminar, começa a obscurecer.

 

E o problema não está só nos objectos enterrados ou nas moedas escondidas. Está no pequeno gesto de negar o troco certo, de inventar que “não tenho moedas” quando, na verdade, o objectivo é ficar com a diferença. É no abuso do costume de arredondar os preços sempre a favor do vendedor. E essa prática, repetida todos os dias, por centenas de comerciantes, corrói a confiança entre quem compra e quem vende. Cria um fosso invisível, mas profundo.

 

Zimpeto não é apenas um mercado. É um termómetro da nossa sociedade. Ali se reflectem as virtudes e os vícios da nossa convivência urbana. Muitos ali trabalham honestamente, lutam de sol a sol, acordam de madrugada, enfrentam poeira e chuva para garantir o pão dos filhos. Mas esses são ofuscados pelos que se tornaram servos dos tais deuses do lucro,  aqueles que fazem da esperteza um estilo de vida, que medem sucesso pela quantidade de trocos que ficaram por devolver.

 

A limpeza do espaço físico foi um bom começo. Mas ainda falta limpar o espaço moral. É preciso varrer a ganância disfarçada de astúcia, expulsar os truques que se tornaram norma, e abrir espaço para uma nova ética comercial, onde vender bem também signifique respeitar o outro.

 

O lucro verdadeiro, esse que vale e permanece, não é aquele que se faz enganando, mas sim o que se constrói com integridade. Porque um cliente que confia volta. E volta com mais alguém. Um cliente que se sente enganado, nunca mais regressa  e leva consigo a má fama.

 

Talvez seja hora de enterrarmos, de vez, esses deuses do lucro. Não com rituais ou campanhas simbólicas, mas com acções concretas: formação em ética comercial, fiscalização justa e contínua, campanhas de sensibilização nos mercados, e acima de tudo, um compromisso pessoal com a honestidade.

 

 Osaka Fala, Moçambique Ouve!

 

Por: Carlos Uqueio

 

Estive recentemente na cidade de Osaka, no Japão, e vivi uma experiência que me ensinou bastante. Não foi só uma viagem a um país diferente, foi uma verdadeira lição sobre como a sociedade pode funcionar melhor quando as pessoas vivem com honestidade, respeito e cuidado pelos outros.

 

Numa das noites da minha estadia, fui jantar num restaurante local onde fui muito bem atendido e saí. Só mais tarde percebi que tinha esquecido o  meu telemóvel em cima da mesa. Fiquei muito preocupado. Voltei rapidamente ao restaurante, achando que já tinha perdido o aparelho. Mas, para minha surpresa, um funcionário do restaurante já vinha ao meu encontro com o telemóvel na mão. Entregou-me com um sorriso calmo, fez uma pequena vénia e voltou ao seu trabalho. Não pediu dinheiro, não reclamou de nada. Apenas fez o que achava certo.

 

Esse gesto simples mostrou-me uma grande verdade: No Japão, as pessoas são ensinadas desde cedo a respeitar aquilo que é dos outros. Não pegam no que não é delas, mesmo que ninguém esteja a ver. Lá, a honestidade faz parte da vida. E isso tocou-me profundamente.

 

Outra coisa que me chamou atenção foi o funcionamento dos restaurantes. Lá, não existe a prática da “nyonga”, que entre nós é a gorjeta. Você paga só o que consumiu. Nada mais. E mesmo sem receber ‘’nyonga, o atendimento é excelente. As pessoas servem com respeito, com paciência, com profissionalismo. Não esperam “algo a mais” para te tratarem bem. Fazem bem feito porque têm consciência e educação.

 

Isso fez-me pensar muito sobre o nosso país. Em Moçambique, infelizmente, estamos habituados a dar gorjeta para receber um bom serviço. Muitas vezes, só somos bem atendidos se deixarmos um “refresco”. E quando alguém perde um objecto de valor, é raro encontrar quem o devolva. Tudo isso precisa mudar.

 

Outro exemplo: certa vez, em Osaka, perguntei a um senhor o caminho para uma loja. Ele não falava inglês, mas mesmo assim caminhou comigo até ao local, para ter certeza de que eu chegaria bem. Foi um gesto simples, mas cheio de significado. Hospitalidade não é só dizer "bem-vindo", é se preocupar com o outro.

 

O Japão não é perfeito, mas tem muitas coisas boas que nós podemos aprender e copiar. Lá, as pessoas vivem com ordem, respeito e responsabilidade. Não precisam de polícia em cada esquina para fazer o que é certo. Elas fazem porque aprenderam isso desde crianças.

 

E eu pergunto: por que nós, moçambicanos, também não podemos ser assim? Temos um povo bom, trabalhador, acolhedor. Mas precisamos mudar alguns hábitos. Precisamos ensinar as crianças que pegar no que não é seu está errado. Precisamos aprender a atender bem sem esperar sempre algo em troca. Precisamos respeitar mais uns aos outros, seja no trânsito, nos serviços, nos espaços públicos ou na convivência diária.

 

A mudança começa por dentro de cada pessoa. Se cada um fizer a sua parte, o país todo melhora. Não é preciso ter muito dinheiro para viver com honestidade. Basta querer fazer o certo.

 

De Osaka, trouxe muitas imagens e boas lembranças. Mas, acima de tudo, trouxe no coração a esperança de que Moçambique também pode ser um lugar onde a honestidade e o respeito sejam vividos todos os dias. Não por medo ou por obrigação, mas porque é assim que se constrói uma sociedade justa.

                                              Vidas ao sabor das ondas

 

Texto e fotos: Carlos Uqueio

No bairro dos pescadores, em Maputo, o dia nasce com o cheiro forte do sal e o som suave das ondas. Antes mesmo de o sol tocar o Índico, homens de mãos calejadas partem em pequenos barcos, carregando redes, iscas e a coragem que o mar exige.

Ali, o mar é mais que paisagem: é destino e sustento. Generoso em algumas manhãs, devolve barcos repletos de peixe e promessas. Mas também tem seus dias ásperos, em que testa a força de quem ousa enfrentá-lo. “Às vezes o combustível acaba lá longe, e ficamos à mercê do balanço das ondas”, confessa um pescador, com o olhar perdido no horizonte, como se esperasse resposta do próprio oceano.

Na beira da praia,como ilustram as imagens de Carlos Uqueio, a vida continua em outras mãos. São as mulheres que transformam o peixe magumba: lavam, limpam, temperam e vendem, num ritual que mistura trabalho e esperança. Pequenas barracas surgem nas redondesas, erguidas por mãos simples, onde vozes se cruzam em negociações rápidas. Mas o inverno não traz só o frio do ar, esfria também o movimento dos compradores, que aos poucos desaparecem.

Ainda assim, o bairro dos pescadores não perde o ritmo nem a fé. Cada amanhecer é um convite silencioso para tentar outra vez, embalados pela brisa que sopra do mar, sussurrando que, apesar dos desafios, o oceano sempre guarda um novo dia de abundância para quem não desiste de sonhar.

 










segunda-feira, 7 de julho de 2025

                                                                       OSAKA:

                                                      Potência industrial com rosto humano

 

Texto e fotos de Carlos Uqueio, publicado no jornal domingo, 6/7/25

Na recente passagem por Osaka, ficou notável o quanto a economia pode funcionar melhor quando está ligada à educação cívica e ao planeamento urbano inteligente. Localizada na região de Kansai, a terceira maior cidade do Japão impressiona não apenas pelos números, cerca de 2,7 milhões de habitantes, mas também pelo funcionamento impecável dos seus serviços e pelo comportamento exemplar da sua população.

 

Embora seja uma metrópole industrial e moderna, Osaka é profundamente marcada por valores de ordem, silêncio e respeito pelo espaço comum. A cidade oferece uma experiência rara para quem vem de realidades em que a desorganização e o improviso ainda marcam o quotidiano económico.

 

HARMONIA NA VIDA URBANA

Com um Produto Interno Bruto (PIB) superior a 500 mil milhões de dólares, Osaka posiciona-se entre as áreas urbanas mais ricas do mundo. É um dos grandes centros industriais e logísticos do Japão, com destaque especial para a indústria automóvel, onde marcas como Toyota, Honda, Nissan e Suzuki mantêm centros de produção e desenvolvimento. Além disso, o sector de tecnologias avançadas, portos, pequenas e médias empresas, e a robusta rede de transporte contribuem para um ambiente empresarial altamente produtivo.

Contudo, o que mais impressiona é que esse crescimento económico não ocorre à custa da qualidade de vida. A cidade é limpa, silenciosa, arborizada e segura. Mesmo nos bairros mais centrais, há árvores, jardins e praças públicas bem cuidadas. A presença do verde, planeada com rigor, dá à cidade um ar respirável e visualmente equilibrado, o que melhora o bem-estar urbano.

No comércio, outro aspecto chama a atenção: não se pratica a gorjeta (conhecida entre nós como “nyonga”), e, mesmo assim, o atendimento é de alta qualidade. A ética está no serviço, e não numa moeda extra. Pequenos restaurantes, mercados, lojas e até vendedores de rua seguem padrões de higiene e atendimento que não dependem de fiscalização permanente. A economia informal é organizada e o cliente sente-se valorizado. O que se nota é que o profissionalismo é parte da cultura.

 

TRANSPORTE  E MOBILIDADE INTELIGENTE

O sistema de transportes é outro pilar da estrutura económica funcional de Osaka. O metro cobre grande parte da cidade e opera com pontualidade milimétrica. As estações são limpas, bem sinalizadas e organizadas. Não se ouvem buzinas, nem se vêem aglomerações desordenadas. Cada passageiro segue o seu caminho em silêncio e com disciplina. O tempo e os recursos são bem utilizados e isso, por si só, já representa eficiência económica.

Nos transportes públicos, não há perdas de produtividade por atrasos ou confusões logísticas. O sistema funciona porque foi desenhado com precisão e porque os cidadãos colaboram. Trata-se de uma engrenagem social e económica baseada no respeito.

 

A “COZINHA DO JAPÃO”

A gastronomia é um dos elementos mais fortes do sector de serviços locais. Osaka é conhecida como a “cozinha do Japão”, e pratos como okonomiyaki (panqueca salgada japonesa) e takoyaki (bolinho de polvo) movimentam não só o turismo, mas também cadeias produtivas de alimentos frescos, embalagens, logística e restauração.

A economia da comida de rua e dos pequenos negócios é tratada com a mesma seriedade dos grandes sectores industriais.

O domingo visitou também o Templo do Pavilhão Dourado (Kinkaku-ji), em Kyoto, a pouco mais de uma hora de Osaka. O turismo religioso e histórico é parte importante da economia regional. O templo, com as suas paredes cobertas de ouro e jardins milimetricamente desenhados, atrai milhares de visitantes por ano. A organização em torno do turismo é discreta, mas eficaz. Há sinalizações em vários idiomas, circuitos bem definidos e total respeito pelos espaços sagrados.

Entretanto, a verdadeira força económica de Osaka está no comportamento das pessoas. Em cada detalhe  no trânsito, no atendimento, na limpeza das ruas, na pontualidade  percebe-se uma cultura baseada em responsabilidade e consciência colectiva.

Portanto, Osaka não é apenas uma cidade rica em números, é também rica em valores. A maior lição económica que dela se tira é que a economia de um país ou cidade não se mede apenas pelo volume de produção, mas também pela forma como se protege o tempo, os recursos, o espaço público e a dignidade do trabalho.

Construir uma economia forte passa por investir com seriedade na educação cívica, no planeamento urbano, transportes eficientes e ética no trabalho.