terça-feira, 9 de abril de 2019

Vénias às bases desta terra Texto de Carol Banze Fotos de de Carlos Uqueio Amanheceu. Do Rovuma a Maputo, do Zumbo ao Índico, a nação se estende à vastidão do seu chão e presta louvores às bases desta terra. Curva-se à Luísa e Marisa; à Maria e Angelina. Das terras do norte ecoa o som do apito e do canto rimando generosamente com os passos das turmalinas enformadas de carne e osso, cuja imagem aparece reflectida na imensidão do céu. São vozes sibilantes que cantam tal-qualmente as andorinhas anunciando a primavera. As ondas do Índico transportam de lés a lés a canção do louvor. É Abril! Moçambique renova as suas cores, ganha novas formas, as formas do amor. É a Felicidade que se aguça no olhar meigo e sorriso maroto da linda menina, digna hospedeira duma nação sem igual, onde as mulheres macuas pulam a corda, de forma periclitante, ao ritmo da paz e do perdão. Onde a terra estremece de prazer a cada salto nesta corda da vida, uma vida que se transforma a cada momento, em cada lugar. É o tufo expressando o clamor de cada macua, masena, mandau, machanga, manhambana…, revigorando o desejo de ver a chama da unidade viva em cada moçambicano. É a dança da esperança por um país melhor, livre da soberba e da cobiça; do ódio e da maldade. É a homenagem a todas as mulheres moçambicanas. Viva o 7 de Abril!








quinta-feira, 27 de dezembro de 2018


Abu Dhabi: uma cidade camaleónica

Texto: Belmiro Adamugy
Fotos: Carlos Uqueio


Um navegador que teme perder a margem de vista jamais conquistará sequer uma ilha, disse o famoso navegador Cristóvão Colombo. Não poderia ser mais apropriada a frase para encimar a prosa restante… uma prosa (in)completa sobre Abu Dhabi, a capital dos Emirados Árabes Unidos (EAU).
                                      
(In)completa porque as obrigações profissionais - cobertura da reunião intermédia da Aliança Global para Vacina e Imunização -  não o permitiram mas, sobretudo, porque a imensidão da mesma e os encantos que esconde e revela são incomensuráveis. A cada passo, uma surpresa. A cada olhar, uma revelação. A Cidade apequena o indivíduo mas destaca o engenho humano. Enche o olho de quem chega…




 Entra-se pelo país adentro, principalmente, pelo Aeroporto Internacional de Dubai. Por acaso é lá onde está plantado o prédio mais alto do mundo; Burj Khalifa Bin Zayid (a Torre do Khalifa), majestosa por cima dos seus 828 metros e 160 andares mas é em Abu Dhabi onde está o prédio mais inclinado do mundo (Capital Gate Tower) de 160 metros de altura e 35 andares (está registado no Guiness Book 2010).
                                      
Os Emirados Árabes Unidos (EAU) são uma federação de 7 emirados, nomeadamente Abu Dhabi, Dubai, Sharjah, Ajman, Ras Al Khaimah, Umm Al-Quwain e Fujairah. A população é de cerca de 10 milhões de habitantes sendo - interessante este detalhe - apenas 12 por cento emiratis, 21 por cento indianos, 13 por cento paquistaneses, entre outras nacionalidades. A língua oficial é o árabe mas também se fala bastante inglês, hindi e urdu. A moeda é Dirham.
Essa profusão de línguas, incluindo o castelhano, é “visível” a olho nu. É tanta gente, de origens diferentes, se acotovelando nas ruas dia e noite. Dir-se-ia que a cidade nunca dorme. 

Dubai é a cidade mais conhecida mas a capital do Emirado é Abu Dhabi. É de lá onde o Principie - Herdeiro de Abu Dhabi e Vice-Comandante Supremo das Forças Armadas Sheikh Mohammad bin Zayed Al Nahyan dirige o país, desde 2014, por causa do estado de saúde do Chefe de Estado Sheik Khalifa bin Zayed Al Nahyan, que ascendeu ao trono após a morte do seu pai, Sheikh Zayed bin Sultan Al Nahyan (primeiro presidente dos EAU desde a sua fundação, há 47 anos, até 2004.
                                                 

Aliás, as ruas de Abu Dhabi estão prenhes de reclames luminosos, outdoors, bandeiras e cartazes anunciando os 47 anos da fundação dos Emirados, cujo poder legislativo é unicamaral - Conselho Nacional Federal, com 40 membros: 20 indicados pelos Emires e 20 eleitos. Cada mandato tem a duração de 2 anos. O Sistema Político dos Emirados Árabes Unidos é constituído por um Conselho Supremo, Conselho de Ministros, e Conselho Nacional Federal.

O Conselho Supremo é formado pelos sete Emires e re­úne-se quatro vezes por ano. Em cada cinco anos o Conselho vota para a escolha do Presidente e do Vice-Presidente, sendo que os Emires de Abu Dhabi e de Dubai têm poder de veto.
                              
Os EAU estão filiados a diversas entidades internacionais, sendo de destacar a Organização das Nações Unidas (ONU), Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP), Liga Árabe, Conselho de Cooperação do Golfo (GCC), Movimento dos Países não-Alinhados e Organização da Cooperação Islâmica.

Detêm a sexta maior reserva de petróleo e com um elevado rendimento per capita (USD 68.600 em 2017) e um superávit comercial anual considerável. De acordo com o Banco Mundial, o PIB per capita do país é o 20º maior do mundo e o segundo maior do Médio Oriente, depois do Qatar.

As exportações de petróleo e do gás natural desempenham um papel importante na economia, especialmente em Abu Dhabi. Um boom na construção, uma base industrial em expansão e um sector de serviços em crescimento contribuem para a diversificação da base económica dos EAU. Exportam também peixe e tâmaras.
                              

Outra fonte de divisas importante é a Autoridade de Investimento de Abu Dhabi, que controla os investimentos de Abu Dhabi, gerindo cerca de USD 360 mil milhões em investimentos no exterior e cerca de USD 900 mil milhões em activos.


No início da década de 1930, a primeira empresa petrolífera dos EAU realizou inquéritos preliminares e o primeiro carregamento de petróleo bruto foi exportado de Abu Dhabi em 1962. Com o aumento das receitas do petróleo, o Emir de Abu Dhabi, o Sheikh Zayed bin Sultan Al Nahyan, empreendeu um programa de construção de escolas, habitação, hospitais e rodovias. Quando as exportações de petróleo de Dubai começaram, em 1969, o Sheikh Rashid bin Saeed Al Maktoum, Emir de Dubai, também utilizou as reservas de petróleo para melhorar a qualidade de vida da população…

E isso é visível.

ABU DHABI POR DENTRO

                              
Abu Dhabi é uma cidade viva. Dia e noite. Fervilha. É o símbolo da modernidade, do futuro. Cidade rica e reservada. Apesar do enorme movimento de pessoas e carros, Abu Dhabi, mantém uma certa quietude quase palpável. Mal se ouve uma buzinadela. Não há polícias fiscalizando o tráfego ou peões. Isso está a cargo de câmaras de vigilância… mas até isso parece dispensável tal é a ordem vigente.
As ruas, largas e bem cuidadas; jardins verdejantes (note-se que a cidade foi erguida num deserto) e edifícios majestosos a perder de vista. A cidade está repleta de arranha-céus de vidro e metal e praias. E ainda há outros tantos em construção. Há tantas gruas pela cidade que cresce a olhos vistos… num país que não tem um único rio natural mas não falta água!
Nos curtos dias de estadia, foi possível perceber que todos os habitantes dos EAU andam na “linha”. A Lei e Ordem imperam de verdade. Ninguém bebe na rua, os jardins não são vandalizados, não há muros pinchados de palavras obscenas, os motoristas obedecem aos sinais de trânsito… enfim a paz social reina…
                               
E a cor da paz é prevalecente. Os emires vestem-se exclusivamente de um branco imaculado. A cor é apropriada para quem vive num ambiente hostil como é um deserto. O branco reflecte os raios solares e dá uma sensação de frescura.

Abu Dhabi também tem as suas torres gémeas, curiosamente, chamadas World Trade Centre. Mas há um lugar mágico, a grande mesquita Sheik Zayed. É um edifício impressionante com colunas cobertas de pedras semi-preciosas. Diz-se que tem o maior tapete persa do mundo.

Abu Dhabi é luxo e ostentação mas também é cultura e religião. É o paraíso para os fãs de arquitectura. É a maior cidade dos emirados e há quem diga que é a mais rica… pelo menos Mukhtar Ahmad, o nosso motorista e cicerone, o afiança antes de atirar que “Abu Dhabi é o melhor sítio para se viver”.
                              

O Heritage village é também um lugar interessante. Para além de iguarias locais, lenços e túnicas, foi construído no local uma réplica dos primeiros edifícios erguidos no que é hoje Abu Dhabi. Casas de pedra, tendas e poços. Também é possível ver cavalos e camelos. Uma forma interessante de preservação da história.

A cidade também tem vários Malls (lojas de grandes superfícies) sendo que alguns funcionam ininterruptamente mas o Marina Mall destaca-se. Localizado próximo do Emirates Palace Hotel. Luxo puro, para além de lojas, restaurantes, tem uma pista para patinagem no gelo.
                       
Mukhtar levou-nos ainda a Eithad Tower, que é um complexo de prédios que conta com 5 torres que estão localizados bem em frente ao hotel Emirates Palace. O lema do Eithad Tower diz que as torres são um reflexo de tudo o que Abu-Dhabi será num futuro próximo: moderno, luxuoso e sofisticado.                                             

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Quero parabenizar o casal #Humberto & #Jenny por este momento tão sublime que é o da união entre duas pessoas que se amam.
Que vocês sejam cobertos de bênçãos, felicidades e plena harmonia e que o caminhar dessa nova vida seja sempre recheado de flores.
Parabéns por esse passo tão importante e de tamanha grandeza em vossas vidas e que hoje e sempre sejam muito felizes.
Esses são os meus verdadeiros e sinceros votos. Obrigado!!!

























quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Quando entro em transe falo línguas que normalmente desconheço
Texto: Carol Banze
Fotos: Carlos Uqueio
                                      
Soa o som do primeiro batuque; seguem-se as réplicas e, enfim, notas altas e graves compõem uma melodia que se alastra pelo ar, sob a batuta de quatro jovens mulheres que, concomitantemente, entoam um cântico em zulu.
Brados intrigantes soltam-se do interior de uma palhota, a metro e pouco do palco preparado para receber personalidades do além.
Muhlahle e Ntavene, duas matswasanas (aprendizes da medicina tradicional), lindas e jovens mulheres, irrompem palhota afora, de cajados e txowas (artefacto em forma de chicote feito de rabo de cavalo) em mãos e fazem a volta ao quintal que acolhe duas residências: uma, que hospeda habitantes como a gente, e outra, a figuras ocultas.
A nossa reportagem, ardilosamente posicionada, irradia, de segundo a segundo, um olhar por todos os cantos, iniciando a pintura de uma tela cujas figuras principais se demarcam pelo desdobramento de personalidade.
Muhlahle e Ntavene aparecem enformadas de carne e osso, em corpos emprestados. A todo momento emitem sons em idiomas desconhecidos por nós e pela maioria dos espectadores; tremelicam, erguendo os ombros num movimento de baixo para cima; dançam…. Os passos são cadenciados, marcados por pura elegância.
Os seus olhares não se cruzam com os nossos. São perdidos, mas ao mesmo tempo achados pela premente intenção de dizer a que vieram em forma de “espírito”.
                               
Nesse entretanto, uma mulher madura, sisuda, de poucas palavras posiciona-se sentada numa esteira, dando indicações da chegada da hora da saudação. O comando é imediatamente entendido. Muhlahle e Ntavene ajoelham-se perante si, fazem vénias e falam, quase que ininterruptamente em zulu, da sua proveniência e dos seus anseios.
A autoridade máxima do fórum onde nos encontramos acolhe aquelas falas e, de momentos em momentos, orienta o coro, afirmando: ‘thokoza nsila ya yingwe…’.
Dos momentos de transe
às dores da carne
                               
Passados aproximadamente 30 minutos, as duas alunas são atraídas para um compartimento da enorme casa onde, espantosamente, se transformam mais uma vez ao recobrarem a consciência.
Estas mulheres fitam os olhares na nossa equipa de reportagem, esboçam sorrisos….
Neste momento, a nossa intervenção é inevitável: vocês estão diferentes, dizemos, lembram-se do que fizeram há poucos minutos?, perguntamos. Para o nosso espanto, a resposta vem em forma de negação: “Não. O que fizemos? Podem narrar?, pedem-nos, “somente sentimos dores em todo o corpo, cansaço…”, revelam.
Este acaba sendo o grande pretexto para o nosso papo. A nossa intenção é perceber Que mundo é esse onde se geram transformações inexplicáveis, trazendo ao ambiente dos vivos figuras intangíveis materialmente?
Ainda que não encontrássemos uma resposta lógica, o que percebemos é que naquelas circunstâncias, o traje, os adereços, o toque dos batuques, os cânticos conspiravam a favor do mistério. Com efeito, uma das principiantes faz uma analogia, trazendo como elemento comparativo o contexto escolar: “estas roupas equivalem ao uniforme escolar e os cânticos ao hino nacional. Quando se canta o hino, as pessoas reagem ficando em sentido. No nosso caso a reacção é a que vocês viram e nós não temos consciência do que tenha se passado. Pior, nem sequer sabemos falar a língua dos espíritos (no caso o Zulu), apesar de nos momentos de transe articularmos fluentemente esta língua”, garantem. 
                               
A estupefacção da nossa parte cresce ainda mais e Muhlahle e Ntavene são intimadas a contar-nos as suas histórias.
 Segundo narram, tudo começou quando tinham poucos anos de vida. No caso de Ntavene, com apenas 9, sofreu de algumas crises de saúde e de comportamento, que se arrastaram até aos 16 anos. Nessa altura, “adoeci gravemente, a ponto de me levarem a um médico tradicional que revelou que eu tinha espíritos”. A infelicidade da jovem estendia-se pela vida afectiva. Em uma das tentativas de se juntar com o seu então parceiro para formar um lar, as coisas não deram certo, pois “eu fugia de madrugada e ia parar à casa de um médico tradicional guiada pelos espíritos”, afirma.
Destino pouco aventurado teve, por seu turno, Muhlahle que, aos 5 anos, já dava indicações de que algo precisava ser revisto em si. “Sofri muito de dores que praticamente não sumiam do meu corpo”.
São factos inefáveis que compõem as histórias das nossas personagens. Os seus relatos coincidem, igualmente, no que toca à sua vida escolar.
Ntavene jura que em contexto de sala de aula não captava sequer um número ou uma letra do que o professor ensinava. Já Muhlahle protagonizou uma proeza jamais entendida, ao frequentar e ficar aprovada desde o ensino primário até ao básico, sem pescar absolutamente nada do que o professor falava. “Eu não percebia, mas no dia das provas tirava até 20 valores”, garante. Hoje em dia, não sabe ler, nem escrever. Inclusive o seu próprio nome.
                                   
Já nos chamaram de malucos
- Zulfa Muchanga, de 53 anos, médica tradicional
As dificuldades por que passaram as nossas entrevistadas, antes de cursarem a medicina tradicional, fizeram com que alguns membros da sociedade as considerassem como sendo portadoras de deficiências mentais. Este testemunho é de Zulfa Muchanga, médica tradicional e formadora de iniciantes.
À semelhança de Muhlahle e Ntavene, quando criança, adolescente e jovem não tirou proveito “como devia ser” da carreira escolar. “Eu não percebia o que se falava, o que se escrevia no quadro”. Facto curioso é que, quando o professor se sentia agastado e se insurgia contra esta aluna, havia sempre uma paga: “se levantasse a voz contra mim ou coisa pior, eu me manifestava. O espírito saía, em plena sala de aula”.
Zulfa Muchanga estudou apenas até à 4ª classe. Hoje dedica-se de corpo e alma à medicina tradicional, atendendo os seus clientes/pacientes e formando novos elementos.
Trata-se de uma área que gera muita polémica, conforme afirma, pela interferência de elementos que, nalgum momento, desvirtuam a sua essência. “Quando um indivíduo almeja tornar-se médico tradicional, sem que seja algo natural, o seu trabalho perde peso. Não atinge os objectivos que se pretendem e, consequentemente, não ajuda na íntegra a quem precisa”, observa.
Mas quando se trata de “escolhidos”, tudo flui, garante Muchanga, e segue o curso natural das coisas. Geralmente, “eles (os escolhidos) são xarás, netos ou simplesmente familiares de elementos de uma estrutura familiar que possuíam esses poderes”.
Assim sendo, há uma conexão insubstituível entre tais indivíduos e os seus espíritos, que ajudam no sucesso desta missão, como médicos tradicionais, aclara Zulfa Muchanga.
É por estas e outras que, às vezes, a cura vem através dos sonhos: “em alguns casos, recebemos orientação sobre a existência de uma planta, no mato, que proporcionará a cura. Em casos de dificuldade de localização, ajoelhamos e phahlamos (evocar os espíritos), pedindo que nos mostrem a direcção, e isso acontece. Há também casos em que nos direccionam até determinados lugares para encontrarmos as peças que compõem os tinhlolos (conchas para adivinhação), um privilégio que, dificilmente, quem não tem vocação consegue ter”, afirma.
O orgulho de se tornar uma curandeirinha
                                            
Mércia Massingue é uma menina de 19 anos, solteira, residente em Gaza. É usuária activa das redes sociais. Lá marca o seu espaço, assumindo, com orgulho, o facto de se ter tornado médica tradicional aos 16 anos.
Sem fugir à generalidade, as lides escolares ficaram prejudicadas quando os seus espíritos levaram-na a apartar-se das carteiras, de forma a proceder a alguns ajustamentos. “Na altura, eu estudava na Escola Secundária de Lyonde, Chókwe, frequentava a 10ª classe”, e criava embaraços ao revelar, em pleno ambiente escolar, a vida dos seus colegas. “Falava do que lhes tinha acontecido nos dias anteriores ou do que lhes aconteceria no futuro. Tinha manifestações (de espírito) em plena aula….”.
Na sequência disso, os caminhos indicaram a sua entrada ao mundo da medicina tradicional. Ao chegar, recebeu um quite apropriado composto de capulanas e colares multicolores; cajados, lanças, txowas e outros materiais.
Mércia tornou-se, então, uma nova aluna neste mundo paranormal. “Comecei a aprender a função de cada artigo; dos medicamentos usados para tratar as pessoas; a interpretar os tinhlolos, a fembar e muitas outras coisas”. Num primeiro momento, não viu com bons olhos a guinada que a sua vida tinha dado, pois, “eu tinha os meus planos, queria estudar, formar-me em enfermagem”.
Mas, hoje, sente-se feliz com a nova realidade, até porque “já voltei à minha vida normal; não tenho mais ataques repentinos, desmaios ou outra qualquer complicação, uma vez que os espíritos já foram atendidos. Digo, com orgulho, que sou uma curandeirinha”, afirma. Entretanto, a médica tradicional de praticamente palmo e meio sonha em ter uma família: casar e ter dois filhos. Actualmente, namora e já pensa em regressar às salas de aulas para se formar como enfermeira, concretizando assim o sonho de infância. 
                                          
É um mundo bonito
Estas são palavras de uma professora, formada ao nível da licenciatura, cujo nome e área preferiu ocultar. Doravante, tratamo-la nesta matéria como Clementina, uma mulher madura, que, em primeiro lugar, defende que “não podemos fugir da nossa tradição; somos africanos. Mesmo quando vieram os colonos já tínhamos a nossa tradição. Até os casamentos eram tradicionais, típicos da nossa gente”.
Reservada e de convicções fortes, Clementina não se arrepende de ter respondido ao chamado dos seus antepassados. “É um mundo bonito. Tenho bonitas recordações do momento em que andávamos pelo mato, durante o curso, e cruzávamos com cobras e animais selvagens, sem que nada de perigoso nos acontecesse. Outro facto interessante é que num estado de transe, afirma-se que falo línguas que em condições normais desconheço. Muitas vezes, esta área é conotada com o diabo, mas não é assim. É uma realidade que faz parte de nós, da nossa identidade; o espírito não está na palhota, está em nós, entretanto, existem regras que devem ser seguidas para que a nossa vida corra de feição”.
E é precisamente sobre essa vida que a nossa reportagem se coloca em conversa com a professora. Falamos de um ambiente que, conforme aponta, é também feito de restrições, tanto na alimentação, como na forma de ser e de estar. Em alguns casos, o indivíduo vê-se obrigado a retirar da sua dieta certos alimentos: “pode ser peixe, carne de porco…dependendo da origem dos seus espíritos”. Mas, também, pode em algumas circunstâncias ingerir alguma bebida que, em condições normais, não faz parte das suas predilecções. De qualquer forma, são aspectos que nem de longe se comparam à fase difícil por que passou, na década de oitenta, quando surgiram as primeiras manifestações dos seus espíritos.
Na verdade, explica que, geralmente, tais fenómenos acontecem através de complicações de saúde ou azares na vida. “E tem também as visões estranhas, durante o sono. Aparece uma realidade que se concretiza no dia seguinte; fora os pressentimentos”, enumera.
Para ela, tudo se processa como se houvesse uma informação adiantada do futuro. Em algumas circunstâncias, “a gente olha para alguém e vislumbra um problema”. Foram alguns destes sinais que fizeram com que a sua vida desse uma grande volta.
Preocupados com o desconhecido e estranho, “marquei e frequentei consultas no hospital, com indicação para a neurologia. Eu sofria de insónia, cansaço; não conseguia concentrar-me para dar aulas”. Mas nada surtia efeito, daí que “chegaram a dar-me uma guia para o hospital psiquiátrico”, revela.
Enquanto isso, a vida seguia à medida do possível. Em 1994 concorreu e entrou para Universidade Eduardo Mondlane, mas o processo de Ensino e Aprendizagem não andou às mil maravilhas. Em 1996, veio um diagnóstico. Mediante algumas complicações, “achavam que eu andava a estudar demais. O médico deu-me o papel para parar”.
Mas os problemas de saúde só se agravaram. “Fiquei cega por uns meses; perdi peso excessivamente; fiquei sem trabalhar”. A família ficou mais preocupada ainda e recorreu à medicina tradicional, atropelando todas as suas convicções. Numa consulta, ficaram a saber que, afinal, Clementina fazia parte de uma família “descendente do espiritismo”.
Certo dia, enquanto a professora dormia, um sonho orientador trouxe a chave para a sua vida: “apareceu-me uma luz! No dia seguinte eu disse ao meu pai: ‘papá, vamos a um sítio!’. Ele tentou questionar sobre que lugar seria esse, mas não adiantou. Ao chegarmos, sem que eu tivesse estado lá antes e muito menos conhecido a senhora que nos recebeu, ela disse ‘eu já estava à sua espera’”.
Era uma médica tradicional. Mas, na verdade, esta apenas assumiu a função de tirá-la da doença, tendo ali ficado por 6 meses. Os dias subsequentes, que se somaram até fechar um ano e três meses, foram passados em casa de outra médica tradicional, onde cursou esta medicina. Hoje, leva a vida como quer. Aliás, após a sua formação na área tradicional, voltou a frequentar o seu curso superior, na UEM, tendo concluído na década de 2000.