Sobreviver a partir do lixo
Texto de : Hercília Marrengule
Fotos de Carlos Uqueio
O relógio apontava para o meio-dia. A temperatura rondava os 38 graus centígrados e ali estavam elas vestidas com roupas cuja espessura desafiava as condições climáticas: calças, camisolas, gorros, lenços à cabeça e outros cobrindo a boca e o nariz.
O objectivo é evitar ao máximo inalar a fumaça causada pela decomposição do lixo. O cheiro forte não mais incomoda a quem está preocupado em phandar, termo usado no local para se referir ao trabalho.
O perigo é eminente. O entra e sai de camiões abarrotados de lixo, desperta os olhares sempre atentos dos catadores que ao indício de abrandamento da marcha, partem em busca da maior quantidade de resíduos aproveitáveis.
As condições insalubres não impedem a presença de mulheres de todas as faixas etárias que na luta pela sobrevivência ignoram todos os riscos.
Elas são mães, esposas, avós e donas de casa. E é no emaranhado do maior aterro sanitário do país que diariamente enfrentam o perigo que este local oferece.
Buscam sustento para os seus.
Afinal, na corrida para garantir o alimento de cada dia, vários são os relatos de gente que morre atropelada, soterrada pelo lixo e que até desenvolve doenças graves.
No mês dedicado à mulher, domingo foi àquele lugar e conta a história destas magníficas guerreiras.
Não saio da lixeira sem conseguir
o suficiente comprar comida
-Glória Conjo, 53 anos de idade
Glória Conjo, 53 anos, conhece muito bem as dificuldades vividas por quem depende do lixo. Vem de Chibuto, província de Gaza.
A falta de emprego levou-a a recorrer à colecta de plástico, latas e outros utensílios para sobreviver. O trabalho é pesado.
Conjo diz à nossa reportagem que sai de casa às quatro horas da manhã e não tem hora para voltar, porque, enquanto não consegue uma quantidade razoável do plástico , que é vendido a 10 meticais o quilo, não retorna à casa.
"Apesar de ter que obedecer os turnos dentro da lixeira eu não saio sem conseguir o suficiente para que meus filhos tenham o que comer. Para ter pelo menos dez quilos por dia não é tarefa fácil", conta.
Viúva há 22 anos, diz que o marido morreu sem construir e com o pouco que consegue ergueu sua casa .
Mãe de 6 filhos, se orgulha por ter dado o seu máximo para que todos frequentassem a escola. Aliás, lamenta que o esforço que está a fazer não seja reconhecido por alguns dos seus filhos que já abandonaram a escola.
"Tudo o que faço é por eles, relata com tristeza no rosto.
O dia de trabalho de Glória Conjo não termina na lixeira, seguindo-se as lides domésticas.
Sonha com o dia que não vai precisar mais depender do lixo para sobreviver .
"Sou mãe e pai para os meus filhos. Apesar de alguns já saberem se virar, espero que algum dia possam me ajudar, mas não me vejo sentada em casa sem fazer nada. O trabalho me dignifica", remata.
Vi meu amigo a morrer quando buscava resíduos
-Artelinda Chuane, 44 anos de idade
Com apenas 16 anos, Artelinda Chuane, hoje com 44 anos de idade, precisou arranjar formas de ajudar a sua mãe no sustento da família. Foi na Lixeira de Hulene onde encontrou a oportunidade para, de forma honesta, ganhar o seu pão.
Encontrámo-la a embalar o plástico coletado para a venda. Há quatro anos foi abandonada pelo pai dos filhos, com quem dividia as despesas, tendo que se desdobrar para suprir a ausência.
Conta ao domingo que diariamente consegue até 400 Meticais e, apesar de ser pouco, com o valor consegue sustentar seus seis filhos.
Relata que além do perigo de apanhar doenças, o risco de ser empurrado pelas máquinas assombra a mente dos catadores. Recorda o dia em que saiu para mais uma jornada e viu seu amigo e companheiro de trabalho morrer atropelado por um camião.
"Sempre que o camião chega corremos para phandar (trabalhar). Meu amigo subiu na traseira do veículo e escorregou no meio do lixo. O motorista, que não se apercebeu do ocorrido, passou por cima do jovem que morreu no local", relembra.
A memória deste fatídico dia nunca lhe abandonou, mas porque a vida segue, ela continua e se vangloria pelo facto de graças ao lixo ter um tecto para descansar.
O maior medo que enfrenta é que o local seja fechado e a mulher que nunca fez outro tipo de trabalho perca a sua fonte de rendimento.
"Se eu tiver que ficar em casa por falta de trabalho o que farei com os meus filhos? É pouco o que ganho , mas com o lixo eu consegui fazer uma casa de dois quartos e sala. Não é suficiente mas temos um tecto ", avalia.
Somos confundidas com mendigos
- Anástácia Dimande, 48 anos de idade
Quem também vive da colecta de resíduos na Lixeira de Hulene é Anastácia Dimande, de 48 anos de idade. Mãe de cinco filhos, é casada e trabalha na lixeira há dez anos.
Conta que vezes sem conta é confundida com uma mendiga devido à forma como se apresenta.
Garante, no entanto, que se não fosse assim "a carne ia sofrer mais". "Aqui estamos muito expostos, já me cortei várias vezes nas mãos e nos pés por falta de um equipamento adequado", explica.
Mulher determinada , diz que não se importa com a chacota. O que não admite é acordar, sentar e esperar que o marido lhe dê tudo.
"Não posso acordar, sentar a espera que meu marido trabalhe sozinho e assuma todas as despesas. A vida é dura, temos de ajudar. A mulher pode e deve trabalhar tanto quanto o homem", sublinha.
Colecta plástico e garrafas e lamenta que os compradores, na maioria das vezes chineses, paguem pouco pelo produto, o que na sua óptica é desvalorização de um trabalho feito com muito sacrifício.
Contudo, diz que com 500 Meticais, média que consegue diariamente do seu trabalho, adquiriu um terreno na Manhiça, província de Maputo, e luta para junto do seu marido (que vive de biscates) conseguir construir a tão sonhada casa própria.
A mulher , que já foi empregada doméstica, diz que gostaria de sair da lixeira para abraçar outro negócio como a venda de produtos de primeira necessidade porque a vida no lixo não é fácil.
"As pessoas apanham doenças e em pouco tempo morrem, sem contar os atropelamentos, acidentes com objectos cortantes. Não temos luvas, em fim o risco está em toda a parte", detalha.
Estamos a morrer aos poucos
-Lilita Chavango, 42 anos de idade
É com o que consegue através do lixo que Lilita Chavango, de 42 anos, garante o sustento da sua família e paga a renda de casa.
Solteira e mãe de sete filhos, foi abandonada, 19 anos já se passaram, pelo parceiro. Na altura, quando se viu com dois filhos para criar, começou a trabalhar na Lixeira de Hulene.
Há dez anos adquiriu seu terreno , mas nunca conseguiu iniciar com as obras porque o pouco que ganha é destinado a suprir as necessidades dos filhos e para renda da casa.
No entanto, se orgulha pelo facto de a família ter sempre o que comer.
"O trabalho não é fácil, o que conseguimos é pouco, há casos de senhoras que trabalham aqui, mas tem ajuda dos parceiros. Eu sou mãe, pai e até avo. Pago renda de casa e posso garantir que nunca dormimos de barriga vazia".
Por conhecer as dificuldades da vida na lixeira diz que apesar de os filhos sempre mostrarem disponibilidade para ajudá-la, aconselha-os a se focarem nos estudos.
"Os filhos tem a tendência de seguir os passos dos pais, mas não é isso que eu quero para eles. Aqui se morre. Eles devem seguir outros caminhos", frisa.
Apesar de reconhecer que precisa de descanso, Chavango não tem horário de trabalho. "Já tive que pernoitar para conseguir mais material de modo a pagar renda , porque o dono do imóvel não queria saber se o dia não foi produtivo".
Para os trabalhos domésticos sempre conta com ajuda dos filhos que entendem que , por estar durante o dia sujeita a todo o tipo de temperaturas, precisa descansar.
Mesmo assim, ressalva : "estamos a morrer aos poucos".