terça-feira, 5 de agosto de 2025

 

                               São Tomé e Príncipe:

              Um país pequeno, mas com histórias imensas

Localizado no Golfo da Guiné, a cerca de 300 quilómetros da costa de África Central, São Tomé e Príncipe é o segundo menor país do continente. Com pouco mais de 230 mil habitantes, o arquipélago é formado por duas ilhas principais e várias ilhotas, onde a natureza exuberante e o ritmo tranquilo do dia a dia se encontram. A língua oficial é o português, mas também se ouvem crioulos locais, reflexo da diversidade cultural do país.

As praias de São Tomé e Príncipe são parte essencial da vida dos seus habitantes. Em quase todas elas, é comum ver barcos de pesca alinhados na beira-mar. Essas embarcações, muitas vezes construídas de forma artesanal, são o sustento de centenas de famílias. Ao amanhecer, pescadores partem para o mar e regressam algumas horas depois com peixes frescos, que são vendidos directamente nos mercados ou nas próprias praias, onde o comércio informal dá vida ao cenário.

O comércio informal é, aliás, uma das marcas do arquipélago. Ruas e praças ganham cor com barracas de frutas tropicais, legumes, peixe seco, roupas e pequenos utensílios. Cada banca é uma história: mulheres que sustentam famílias, jovens empreendedores e idosos que mantêm vivas tradições antigas de troca e venda directa.

Para circular entre bairros, vilas e mercados, os mototáxis chamados localmente de “ya motó” , são indispensáveis. Rápidos e acessíveis, eles funcionam como o principal meio de transporte para quem vive ou visita o país. Não é raro ver passageiros equilibrando sacolas de compras ou mesmo produtos para revenda nas feiras locais, numa prova de como a economia formal e informal se entrelaçam no dia a dia.

Mais do que paisagens deslumbrantes, São Tomé e Príncipe é um mosaico de trabalho, tradição e proximidade entre as pessoas. Entre barcos à beira-mar, mercados improvisados e a agilidade dos mototáxis, cada detalhe revela a essência de um arquipélago que, apesar de pequeno, tem uma identidade rica e profundamente ligada ao seu povo.

 














sábado, 26 de julho de 2025

 Deuses do Lucro

 

Por: Carlos Uqueio

 

O Mercado Grossista do Zimpeto é muito mais do que um lugar onde se vai comprar cebola, batata ou tomate. É um mundo dentro de outro mundo. Um corpo vivo que respira ao som dos passos apressados, dos gritos dos vendedores e do cheiro da fruta madura. Mas, nesse ambiente intenso e cheio de vida, há também deuses invisíveis. Não são de madeira nem de pedra. São pequenos, silenciosos, mas poderosos: os deuses do lucro.

 

Fui vítima de um deles numa manhã aparentemente comum. Andava entre as bancas à procura da batata, tentando fugir da multidão que se apertava entre sacos e carrinhos de mão. Finalmente escolhi uma banca. O vendedor, com aquele sorriso maroto e voz experiente, disse: “Dê-me 40, 30, 20 meticais para facilitar o troco”. Soou prático. Entreguei o valor exacto. Confiei na pressa. Caminhei mais alguns metros e fui verificar. O troco estava incompleto. Fui enganado. Perdi. E fiquei com aquela sensação amarga de ter alimentado, mais uma vez, os tais deuses que só sabem tirar e nunca dar.

 

A prática é comum. Tornou-se quase rotina. Quem circula por ali frequentemente já aprendeu a desconfiar, a contar o troco na hora, a fazer cálculos duas ou três vezes.

 

Durante uma das limpezas organizadas pelo Conselho Municipal de Maputo, o que veio à tona não foram apenas os restos dos produtos apodrecidos ou os sacos plásticos espalhados no chão. Apareceram também objectos de rituais, garrafas enterradas, “swifungos” esquecidos, materiais místicos usados, dizem alguns que são usados para atrair clientes, garantir vendas e proteger o negócio.

 

Essa mistura mostra que muitos comerciantes já não confiam apenas na qualidade dos seus produtos ou no seu esforço diário. Passaram a depender da força invisível de amuletos e promessas espirituais. Mas há uma linha muito fina entre a fé e o engano. Quando a fé é usada como escudo para justificar atitudes desonestas, ela perde seu brilho. A espiritualidade, que deveria iluminar, começa a obscurecer.

 

E o problema não está só nos objectos enterrados ou nas moedas escondidas. Está no pequeno gesto de negar o troco certo, de inventar que “não tenho moedas” quando, na verdade, o objectivo é ficar com a diferença. É no abuso do costume de arredondar os preços sempre a favor do vendedor. E essa prática, repetida todos os dias, por centenas de comerciantes, corrói a confiança entre quem compra e quem vende. Cria um fosso invisível, mas profundo.

 

Zimpeto não é apenas um mercado. É um termómetro da nossa sociedade. Ali se reflectem as virtudes e os vícios da nossa convivência urbana. Muitos ali trabalham honestamente, lutam de sol a sol, acordam de madrugada, enfrentam poeira e chuva para garantir o pão dos filhos. Mas esses são ofuscados pelos que se tornaram servos dos tais deuses do lucro,  aqueles que fazem da esperteza um estilo de vida, que medem sucesso pela quantidade de trocos que ficaram por devolver.

 

A limpeza do espaço físico foi um bom começo. Mas ainda falta limpar o espaço moral. É preciso varrer a ganância disfarçada de astúcia, expulsar os truques que se tornaram norma, e abrir espaço para uma nova ética comercial, onde vender bem também signifique respeitar o outro.

 

O lucro verdadeiro, esse que vale e permanece, não é aquele que se faz enganando, mas sim o que se constrói com integridade. Porque um cliente que confia volta. E volta com mais alguém. Um cliente que se sente enganado, nunca mais regressa  e leva consigo a má fama.

 

Talvez seja hora de enterrarmos, de vez, esses deuses do lucro. Não com rituais ou campanhas simbólicas, mas com acções concretas: formação em ética comercial, fiscalização justa e contínua, campanhas de sensibilização nos mercados, e acima de tudo, um compromisso pessoal com a honestidade.

 

 Osaka Fala, Moçambique Ouve!

 

Por: Carlos Uqueio

 

Estive recentemente na cidade de Osaka, no Japão, e vivi uma experiência que me ensinou bastante. Não foi só uma viagem a um país diferente, foi uma verdadeira lição sobre como a sociedade pode funcionar melhor quando as pessoas vivem com honestidade, respeito e cuidado pelos outros.

 

Numa das noites da minha estadia, fui jantar num restaurante local onde fui muito bem atendido e saí. Só mais tarde percebi que tinha esquecido o  meu telemóvel em cima da mesa. Fiquei muito preocupado. Voltei rapidamente ao restaurante, achando que já tinha perdido o aparelho. Mas, para minha surpresa, um funcionário do restaurante já vinha ao meu encontro com o telemóvel na mão. Entregou-me com um sorriso calmo, fez uma pequena vénia e voltou ao seu trabalho. Não pediu dinheiro, não reclamou de nada. Apenas fez o que achava certo.

 

Esse gesto simples mostrou-me uma grande verdade: No Japão, as pessoas são ensinadas desde cedo a respeitar aquilo que é dos outros. Não pegam no que não é delas, mesmo que ninguém esteja a ver. Lá, a honestidade faz parte da vida. E isso tocou-me profundamente.

 

Outra coisa que me chamou atenção foi o funcionamento dos restaurantes. Lá, não existe a prática da “nyonga”, que entre nós é a gorjeta. Você paga só o que consumiu. Nada mais. E mesmo sem receber ‘’nyonga, o atendimento é excelente. As pessoas servem com respeito, com paciência, com profissionalismo. Não esperam “algo a mais” para te tratarem bem. Fazem bem feito porque têm consciência e educação.

 

Isso fez-me pensar muito sobre o nosso país. Em Moçambique, infelizmente, estamos habituados a dar gorjeta para receber um bom serviço. Muitas vezes, só somos bem atendidos se deixarmos um “refresco”. E quando alguém perde um objecto de valor, é raro encontrar quem o devolva. Tudo isso precisa mudar.

 

Outro exemplo: certa vez, em Osaka, perguntei a um senhor o caminho para uma loja. Ele não falava inglês, mas mesmo assim caminhou comigo até ao local, para ter certeza de que eu chegaria bem. Foi um gesto simples, mas cheio de significado. Hospitalidade não é só dizer "bem-vindo", é se preocupar com o outro.

 

O Japão não é perfeito, mas tem muitas coisas boas que nós podemos aprender e copiar. Lá, as pessoas vivem com ordem, respeito e responsabilidade. Não precisam de polícia em cada esquina para fazer o que é certo. Elas fazem porque aprenderam isso desde crianças.

 

E eu pergunto: por que nós, moçambicanos, também não podemos ser assim? Temos um povo bom, trabalhador, acolhedor. Mas precisamos mudar alguns hábitos. Precisamos ensinar as crianças que pegar no que não é seu está errado. Precisamos aprender a atender bem sem esperar sempre algo em troca. Precisamos respeitar mais uns aos outros, seja no trânsito, nos serviços, nos espaços públicos ou na convivência diária.

 

A mudança começa por dentro de cada pessoa. Se cada um fizer a sua parte, o país todo melhora. Não é preciso ter muito dinheiro para viver com honestidade. Basta querer fazer o certo.

 

De Osaka, trouxe muitas imagens e boas lembranças. Mas, acima de tudo, trouxe no coração a esperança de que Moçambique também pode ser um lugar onde a honestidade e o respeito sejam vividos todos os dias. Não por medo ou por obrigação, mas porque é assim que se constrói uma sociedade justa.

                                              Vidas ao sabor das ondas

 

Texto e fotos: Carlos Uqueio

No bairro dos pescadores, em Maputo, o dia nasce com o cheiro forte do sal e o som suave das ondas. Antes mesmo de o sol tocar o Índico, homens de mãos calejadas partem em pequenos barcos, carregando redes, iscas e a coragem que o mar exige.

Ali, o mar é mais que paisagem: é destino e sustento. Generoso em algumas manhãs, devolve barcos repletos de peixe e promessas. Mas também tem seus dias ásperos, em que testa a força de quem ousa enfrentá-lo. “Às vezes o combustível acaba lá longe, e ficamos à mercê do balanço das ondas”, confessa um pescador, com o olhar perdido no horizonte, como se esperasse resposta do próprio oceano.

Na beira da praia,como ilustram as imagens de Carlos Uqueio, a vida continua em outras mãos. São as mulheres que transformam o peixe magumba: lavam, limpam, temperam e vendem, num ritual que mistura trabalho e esperança. Pequenas barracas surgem nas redondesas, erguidas por mãos simples, onde vozes se cruzam em negociações rápidas. Mas o inverno não traz só o frio do ar, esfria também o movimento dos compradores, que aos poucos desaparecem.

Ainda assim, o bairro dos pescadores não perde o ritmo nem a fé. Cada amanhecer é um convite silencioso para tentar outra vez, embalados pela brisa que sopra do mar, sussurrando que, apesar dos desafios, o oceano sempre guarda um novo dia de abundância para quem não desiste de sonhar.

 










segunda-feira, 7 de julho de 2025

                                                                       OSAKA:

                                                      Potência industrial com rosto humano

 

Texto e fotos de Carlos Uqueio, publicado no jornal domingo, 6/7/25

Na recente passagem por Osaka, ficou notável o quanto a economia pode funcionar melhor quando está ligada à educação cívica e ao planeamento urbano inteligente. Localizada na região de Kansai, a terceira maior cidade do Japão impressiona não apenas pelos números, cerca de 2,7 milhões de habitantes, mas também pelo funcionamento impecável dos seus serviços e pelo comportamento exemplar da sua população.

 

Embora seja uma metrópole industrial e moderna, Osaka é profundamente marcada por valores de ordem, silêncio e respeito pelo espaço comum. A cidade oferece uma experiência rara para quem vem de realidades em que a desorganização e o improviso ainda marcam o quotidiano económico.

 

HARMONIA NA VIDA URBANA

Com um Produto Interno Bruto (PIB) superior a 500 mil milhões de dólares, Osaka posiciona-se entre as áreas urbanas mais ricas do mundo. É um dos grandes centros industriais e logísticos do Japão, com destaque especial para a indústria automóvel, onde marcas como Toyota, Honda, Nissan e Suzuki mantêm centros de produção e desenvolvimento. Além disso, o sector de tecnologias avançadas, portos, pequenas e médias empresas, e a robusta rede de transporte contribuem para um ambiente empresarial altamente produtivo.

Contudo, o que mais impressiona é que esse crescimento económico não ocorre à custa da qualidade de vida. A cidade é limpa, silenciosa, arborizada e segura. Mesmo nos bairros mais centrais, há árvores, jardins e praças públicas bem cuidadas. A presença do verde, planeada com rigor, dá à cidade um ar respirável e visualmente equilibrado, o que melhora o bem-estar urbano.

No comércio, outro aspecto chama a atenção: não se pratica a gorjeta (conhecida entre nós como “nyonga”), e, mesmo assim, o atendimento é de alta qualidade. A ética está no serviço, e não numa moeda extra. Pequenos restaurantes, mercados, lojas e até vendedores de rua seguem padrões de higiene e atendimento que não dependem de fiscalização permanente. A economia informal é organizada e o cliente sente-se valorizado. O que se nota é que o profissionalismo é parte da cultura.

 

TRANSPORTE  E MOBILIDADE INTELIGENTE

O sistema de transportes é outro pilar da estrutura económica funcional de Osaka. O metro cobre grande parte da cidade e opera com pontualidade milimétrica. As estações são limpas, bem sinalizadas e organizadas. Não se ouvem buzinas, nem se vêem aglomerações desordenadas. Cada passageiro segue o seu caminho em silêncio e com disciplina. O tempo e os recursos são bem utilizados e isso, por si só, já representa eficiência económica.

Nos transportes públicos, não há perdas de produtividade por atrasos ou confusões logísticas. O sistema funciona porque foi desenhado com precisão e porque os cidadãos colaboram. Trata-se de uma engrenagem social e económica baseada no respeito.

 

A “COZINHA DO JAPÃO”

A gastronomia é um dos elementos mais fortes do sector de serviços locais. Osaka é conhecida como a “cozinha do Japão”, e pratos como okonomiyaki (panqueca salgada japonesa) e takoyaki (bolinho de polvo) movimentam não só o turismo, mas também cadeias produtivas de alimentos frescos, embalagens, logística e restauração.

A economia da comida de rua e dos pequenos negócios é tratada com a mesma seriedade dos grandes sectores industriais.

O domingo visitou também o Templo do Pavilhão Dourado (Kinkaku-ji), em Kyoto, a pouco mais de uma hora de Osaka. O turismo religioso e histórico é parte importante da economia regional. O templo, com as suas paredes cobertas de ouro e jardins milimetricamente desenhados, atrai milhares de visitantes por ano. A organização em torno do turismo é discreta, mas eficaz. Há sinalizações em vários idiomas, circuitos bem definidos e total respeito pelos espaços sagrados.

Entretanto, a verdadeira força económica de Osaka está no comportamento das pessoas. Em cada detalhe  no trânsito, no atendimento, na limpeza das ruas, na pontualidade  percebe-se uma cultura baseada em responsabilidade e consciência colectiva.

Portanto, Osaka não é apenas uma cidade rica em números, é também rica em valores. A maior lição económica que dela se tira é que a economia de um país ou cidade não se mede apenas pelo volume de produção, mas também pela forma como se protege o tempo, os recursos, o espaço público e a dignidade do trabalho.

Construir uma economia forte passa por investir com seriedade na educação cívica, no planeamento urbano, transportes eficientes e ética no trabalho.












quinta-feira, 26 de junho de 2025

                 Mamã, Já Não Estás Entre Nós"

No dia 28 de maio de 2025, a minha vida parou. Foi nesse dia que a minha mãe, Maria Ngovene, partiu para sempre precisamente no dia em que completaria 76 anos de vida. O que deveria ser um momento de celebração e gratidão à vida tornou-se um dos dias mais tristes da minha existência. Mas a verdade é que Deus já me estava a preparar para aquele momento.

No início de maio, enquanto fazia tarefas domésticas, ouvi claramente uma voz sussurrar aos meus ouvidos:

"Brevemente, estarás a cantar aquela música muito cantada nos funerais."

Sem entender o sentido daquilo, comecei a cantar, num tom baixo, quase automático… mas não dei muita importância. Hoje, olhando para trás, vejo que aquele foi o primeiro sinal

Na manhã da partida da minha mãe, eu estava em missão de trabalho, a cobrir uma sessão parlamentar na qual participava a Primeira-Ministra Maria Benvinda Levi. Subitamente, recebo uma chamada da minha sobrinha Maria, chará da minha mãe  completamente desesperada, aos prantos, sem conseguir articular uma frase inteira. Só repetia:

"Tio Carlos... Tio Carlos..."

O meu íntimo já sabia. Algo em mim dizia que aquele era o telefonema que um dia eu temia receber.

Avisei o assessor de imprensa e os colegas que estavam comigo e fui dispensado. Fui deixar o carro em casa, na Zona Verde da Matola, onde encontrei uma multidão em silêncio à minha espera. A dor já pairava no ar.

Estavam todos à espera que eu levasse o corpo da minha mãe à morgue. Contactei a Funerária Moçambicana, que prontamente removeu o corpo, e seguimos para a Morgue do Hospital Provincial da Matola.


Ali, ao entrar naquele ambiente gelado e impessoal, vivi uma das experiências mais duras da minha vida.Vi corpos sem vida de homens, mulheres e crianças. Uns cobertos, outros expostos… A visão era brutal.Aquelas imagens ficaram cravadas na minha mente e tornaram-se pesadelos recorrentes. Não desejo essa vivência a ninguém.

Foi nesse momento que percebi algo com profundidade:Na morgue, tudo termina. Vaidade, orgulho, mágoas, discussões e até o ódio acabam ali. O que permanece é apenas o corpo, imóvel e silencioso.


É duro ser homem. É duro ser o responsável por conduzir a despedida de quem te deu a vida. Mas fui eu quem cuidou da minha mãe até ao seu último descanso.

Eu entrei na morgue. Vi o seu corpo frio. Logo após deixar o corpo, senti uma dor intensa e inexplicável nos dois braços. Dormi com essa dor e acordei com ela, como se fosse um peso espiritual que o meu corpo carregava.

No dia seguinte, acompanhado pelo  tio Carlos, irmão mais novo do meu pai já falecido, fui à morgue para tratar do processo de óbito. Depois seguimos até ao Cemitério de Lhanguene, o local onde a minha mãe, ainda em vida, pediu para ser sepultada  junto do seu falecido esposo, meu pai.

Após tratarmos da papelada, comentei com o meu chará:

"Já que estamos aqui, por que não levamos um pouco de água para pôr na campa do seu irmão?"

Ele concordou. Comprámos uma garrafa de 5 litros ali mesmo no cemitério.

Ao aproximar-se da campa, o meu chará disse em voz alta:

"Meu irmão querido, estamos aqui para informar que a tua esposa, mãe dos teus filhos, já não está mais entre nós. Segundo a sua vontade, será sepultada aqui ao teu lado, onde repousas em paz."

Eu também me aproximei e, enquanto lavava a pedra mármore da campa, falei:

"Papá, estou aqui para te informar que a mamã já nos deixou. Ela será sepultada aqui, conforme me disse um dia, há muitos anos."

Naquele exato momento, algo milagroso aconteceu:

A dor dos meus braços desapareceu por completo. Como se aquela conversa com os meus pais tivesse trazido alívio ao meu corpo e à minha alma. Até hoje me pergunto o que isso significou. Mas ninguém estava ali para me dar uma resposta.

A minha mãe foi sepultada no dia 4 de junho de 2025. O velório teve lugar no próprio cemitério, com a presença de familiares vindos de Gaza, África do Sul e outras partes. A cerimónia foi conduzida pela Igreja Zion, a mesma onde a minha mãe professava a sua fé. O pastor Bila foi quem dirigiu o culto fúnebre.

Fui eu quem cuidou da minha mãe até ao seu último suspiro terreno. Fui eu quem entrou na morgue e viu o seu corpo estatelado, imóvel, dentro daquela gaveta fria. Mandei preparar o ‘’xiyambalo’’, o vestuário tradicional da igreja que ela tanto respeitava.

Fui eu quem fechou a tampa do caixão.

Fui eu quem leu a última mensagem em nome dos filhos.

 

Mensagem lida no velório e sepultamento da minha mãe

Meus irmãos, familiares, vizinhos e amigos,

Hoje é um dia mais difícil das nossas vidas. Nossa mamã partiu justamente no dia em que completaria 76 anos. Já tínhamos começado a preparar o seu bolo, pensado nas palavras para lhe dizer, no abraço para lhe dar. Mas, em vez de festa, vivemos um luto pesado. Um vazio que tomou conta de tudo.

É difícil aceitar que ela se foi. Difícil entender que aquela que sempre esteve ali, de repente já não está mais. Mas, ao mesmo tempo, olhamos para trás e percebemos que ela nos deixou. Nossa mãe foi mais que uma mãe. Foi coluna, foi chão, foi teto. Foi colo nos dias de tristeza e força nos dias de luta. Nunca se colocou em primeiro lugar. Sempre viveu para nos proteger, orientar e amar.

Ela foi mulher de fé, de trabalho, de coragem. Nos ensinou que a vida não é fácil, mas que com união, paciência e esperança, a gente vence. Suportou dores calada. Sorriu mesmo quando o coração estava cansado. Guardou lágrimas para não nos preocupar. Quantas vezes não percebemos tudo o que ela fazia por nós... e hoje, a sua ausência nos mostra o quanto ela era tudo.

Partir no dia do próprio aniversário… isso não é por acaso. É como se Deus quisesse mostrar que ela fechou o ciclo da vida com honra. Que cumpriu a sua missão até o fim. Foi chamada para celebrar a data no céu, onde não há dor, nem lágrima, nem sofrimento. Lá, onde os justos descansam.

A dor que sentimos é profunda. Mas também é profundo o amor, a gratidão e o orgulho de termos sido filhos de uma mulher tão especial. Cada um de nós carrega algo dela. Um jeito, uma palavra, uma lembrança. E isso, ninguém pode tirar.

Mãe, o bolo que prepararíamos hoje virou altar de saudade. As velas que acenderíamos em festa agora são orações para tua paz. Mas mesmo em meio à dor, te agradecemos por tudo. Pela vida, pela criação, pelos conselhos, pelos castigos com amor, pelos carinhos silenciosos, pelas noites acordadas por nossa causa. Te agradecemos por teres sido mãe com todas as letras.

Descansa, nossa rainha. Teu nome está escrito dentro de nós, para sempre.

Vai em paz, que aqui continuaremos unidos, como a senhora sempre quis.
E no meio do pranto, seguimos com a certeza: um dia, nos encontraremos de novo.

Amém.

 

                          FUNCHO


O homem por trás da
lente da independência
Fotos: #joaocosta
Publicado no Jornal Domingo 22/06/2025
Ao celebrarmos os 50 anos da independência de Moçambique, é imprescindível olhar para as imagens que, ao longo dessas cinco décadas, ajudaram a contar a história de um país em transformação. Poucos nomes são tão emblemáticos nesse registo visual como o de João Costa, conhecido simplesmente como ‘’Funcho’’. Sua lente não apenas capturou momentos decisivos da história moçambicana, mas também reflectiu as emoções, as lutas e as esperanças de um povo. Este é um olhar que vai além da técnica fotográfica: é um verdadeiro testemunho da alma de uma nação. Mas, afinal, quem é o homem por trás das lentes?
“Fora da fotografia e fora das lentes… é difícil responder. Sou fotógrafo, isso é certo, sou uma referência para muitos, mas sinto medo do que ainda devo fazer mais,” confessa ‘’Funcho’’, com a humildade dos grandes mestres.
Nascido em Viana do Castelo, Portugal, em 1951, Funcho chegou a Moçambique ainda bebé, com apenas seis meses de vida. O solo de Nampula, onde cresceu até os 14 anos, foi seu primeiro chão, onde pisou nos braços da mãe. Em seguida, mudou-se para então Lourenço Marques, onde começaria a moldar seu destino.
Estudante da universidade Lourenço Marques, iniciou na engenharia, mas o 25 de Abril e as mudanças do mundo o desviaram para o seu verdadeiro chamado: a fotografia.
“Minha paixão pela imagem começou com meu pai. Ele tinha uma máquina fotográfica que eu respeitava e, ainda criança, já tentava registar momentos com ela. Mas foi na universidade, trabalhando na associação académica, que comecei a levar a fotografia a sério,” lembra.
A primeira câmara profissional veio de uma surpresa do avô, que vivia no Japão. Era uma Nikon que marcaria o início de uma trajectória longa e dedicada. Funcho conta que trabalhou como fotógrafo na Faculdade de Medicina da Universidade de Lourenço Marques, produzindo imagens para pesquisas médicas e aulas, enquanto ainda era estudante.
Foi também repórter fotográfico para o jornal A Voz de Moçambique, da Associação dos Naturais, antes de seguir para o Jornal Notícias em 1974, ano em que a liberdade começava a despontar.
“Fui enviado para a Tanzânia para acompanhar a viagem do presidente Samora Machel, pouco antes da independência, em 1975. Estive presente na proclamação da independência no Estádio da Machava, capturando a alegria das pessoas naquele momento histórico,” conta Funcho.
Mas a fotografia, para ele, nunca foi só trabalho. Era paixão, era sustento, era vida. Mesmo diante da pouca valorização e dos meios escassos, quando os jornais publicavam imagens escuras, sem contraste e de baixa qualidade, ‘’Funcho’’ nunca abandonou a câmara.
“A fotografia não enriquece, mas dá vida. É o que me permitiu seguir em frente,” diz com um sorriso que carrega a marca do esforço.
No Instituto Nacional de Cinema, onde ingressou em 1977, continuou a aprimorar seu olhar, mesclando cinema e fotografia. Mas sempre fotografou, sobretudo a política e as figuras que moldaram a história moçambicana.
Fotografou Samora, Chissano, Mandela, Nyerere, Agostinho Neto, entre outros. Relembra, com poesia e realismo, as dificuldades e os desafios de ser fotógrafo em tempos de mudanças profundas: “Ser fotógrafo não era fácil. Não éramos levados a sério; éramos o segundo plano. E até hoje, essa luta continua. A mentalidade sobre a fotografia precisa mudar,” reflecte.
Ele também denuncia as restrições e o preconceito ainda presentes, quando fotografar parece algo proibido, vigiado, controlado. E denuncia a visão do fotógrafo como alguém que só busca dinheiro:
“Quando as pessoas veem a câmera, pensam logo em dinheiro. Mas é mais do que isso. É uma forma de contar histórias, de eternizar momentos,” afirma.
Funcho não hesita em lembrar o papel das imagens que capturou, não só de presidentes, mas de uma nação inteira em transformação, e conclui com um olhar firme, repleto de sensibilidade:
Ao revisitar as imagens de Funcho, percebemos que sua obra é mais do que um simples acervo fotográfico; é um arquivo vivo da memória colectiva moçambicana. Por meio de seu olhar atento e sensível, ele conseguiu eternizar a essência de um povo, suas vitórias, seus desafios e suas esperanças. Em tempos de rápidas transformações, o legado de Funcho nos lembra que a fotografia é, acima de tudo, um poderoso instrumento de preservação histórica e cultural. Ele não é apenas o homem por trás das lentes, mas um verdadeiro guardião da identidade moçambicana, alguém cuja paixão e compromisso com a imagem continuam a inspirar novas gerações.
Fotojornalista defende que a mentalidade sobre a fotografia deve mudar.