sábado, 11 de maio de 2019


O dia em que a água não nos levou

Texto: Carol Banze
Fotos: Carlos Uqueio
Publicado in 'jornal domingo'




Uma forte corrente de água tomou parcialmente a viatura a todo terreno que nos transportava até Macomia, na cobertura de uma nobre missão, após a passagem do devastador ciclone tropical Kenneth. Era domingo, dia 28 de Abril último, passávamos pelo posto administrativo de Mieze, à entrada do distrito de Metuge.
                                 
Os contornos da estrada que nos levaria ao nosso destino tinham sumido das nossas vistas. Vimo-nos envolvidos por uma fronteira líquida. Uma corrente feroz convidava-nos a todo o instante a um destino tenebroso.
A força e imensidão daquelas águas turvas, cuja dimensão semicerrava os olhos de quem se atrevia a estender o olhar, deixavam-nos literalmente em cólicas.
Por alguns minutos, ficámos entre a terra firme e o curso de água, que se precipitava em direcção ao mar, a uma velocidade que beirava os 50 quilómetros por hora, emitindo um som arrepiante e aterrorizante.
                                    
A nossa vida ficou dependente de cálculos e de sorte. Muita sorte. Um cenário sinistro desenhou-se. Seguir até Macomia era uma questão de escolha. Ou não. A verdade é que Ave-marias foram rezadas em silêncio; os antepassados invocados numa busca por forças naquela condição de adversidade.
O desafio estava lançado. De qualquer modo, naquela condição de cegueira, uma luz guiou a mente dos condutores que transportavam a nós, jornal domingo, e a distinta lista de altas individualidades lideradas pelo Primeiro-ministro, Carlos Agostinho do Rosário.
                                     
Louvados foram aqueles homens que vestiram, momentaneamente, a pele de “marinheiros”; transformaram veículos terrestres em embarcações aquáticas e tornaram possível a nossa passagem rumo a Macomia.
A verdade é que toda a gente, naquele momento, viu-se submetida à prova de temeridade e determinação. Mas a odisseia não terminou por aqui, pois, percorridos alguns quilómetros, fomos confrontados de forma directa pelo rio Mieze.
Ele encontrava-se posicionado debaixo de uma pequena ponte, e era visível aos pulos, numa tentativa infrutífera de trepar o asfalto, como consequência da chuva que caía de forma ininterrupta.
                                    
De qualquer modo, havia que seguir viagem, ainda que envoltos em dúvidas em relação ao regresso, afinal a força das águas violentas já dera mostras de que não daria tréguas.
Naquele instante, o futuro deixou de ser uma prioridade. Vivemos uma hora de cada vez. O presente, sim, estava no cerne da questão, afinal milhares de pessoas aguardavam encarecidamente por olhares complacentes, palavras de conforto e, sobretudo, por um norte, que ia sendo transportado na coluna de esperança. Macomia esperava por isso, e muito mais.
O que de forma imaginária se sabia é que os estragos provocados pelo insaciável Kenneth haviam criado chagas quase incuráveis. Já no terreno, de localidade em localidade, distrito em distrito, o pesadelo ganhou forma e apresentou-se aos olhos de todos.
                              
Várias mulheres, algumas trajadas de djubôs e turbantes coloridos, acompanhadas dos homens daquelas terras, encontravam-se posicionadas aos magotes, ao longo da estrada. Em Meluco, Roma, exibiam olhares atónitos, que expressavam incertezas.
Os contornos dos seus corpos estavam expostos, tudo por culpa de cada gota indisciplinada e assassina da chuva que teimava em cair. As poses eram únicas e invariáveis: de braços levantados até à altura do peito, tremendo de frio, rangendo os dentes, sofrendo de fome…. 
Como não? A passagem do ciclone apagou o sorriso e o alento em cada uma daquelas respeitáveis figuras que fitavam o olhar em nós clamando por qualquer ajuda.
A tempestade tinha derrubado as construções locais, infra-estruturas que se estendiam tipicamente ao longo da estrada, cujo desenho lembra a figura de um nyamussoro (curandeiros) de chapéu, sentado, vestido adequadamente para o acto de fembar (detectar espíritos); tirou-lhes as machambas, as árvores....
E a nossa viagem seguia, os minutos passavam, as distâncias ultrapassadas. A dada altura, a vila-sede de Macomia revelou-se totalmente devastada: edifícios administrativos, casas, escolas, hospital, praticamente desnudos. Os postes de energia estavam tombados. Na berma da estrada, via-se uma instituição bancária apenas resguardando, no meio de ruínas, a caixa 1, caixa 2 e caixa 3.
Kenneth levou consigo a dignidade de pessoas, condicionou o seu direito à educação, à saúde; amputou o privilégio de progredirem na vida.
Milhares de famílias ficaram sem tecto, sem chão, sem parede, sem vida. Corações foram destroçados. A tempestade roubou o bem mais precioso que existe no universo: a vida, de dezenas de pessoas.
O retrato da desgraça ficou fixado, na só em Macomia mas também, desde o dia 24 de Abril, em locais como Ibo, Quissanga, Mocímboa da Praia, só para citar alguns exemplos. Entretanto, a cidade capital da província, Pemba, para onde regressámos sem sobressaltos após a atribulada viagem, não escapou dos resquícios da funesta ocorrência.
Conquistas obtidas ao longo de vários anos foram colocadas terra abaixo. O desempenho de famílias esforçadas transformado em entulho.
Em Pemba, o lendário Cariacó, que acolhe a história de várias origens, foi colocado de bruços. Não só este extenso pedaço de terra, mas também Natite, outro bairro também colado à capital. Ficou abarrotado de água e abriu-se pelas costuras, agravando a condição das respectivas vias de acesso. Em Ingonani, terra da Raínha Mariamo e seus “súbditos”, várias residências desmoronaram. O muro da marinha cedeu. Salas de aula, em Paquitequete, ficaram descobertas. As chapas que lhe cobriam o tecto voaram metros abaixo, depois de ficarem retorcidas devido à força dos ventos.
De qualquer modo, o renascer de alguma esperança por dias melhores estava depositado no rosto cândido e iluminado de uma criatura de poucos dias de vida, que, aconchegada nos braços da sua mãe, dentro de um centro de acolhimento, contradizia toda a expressão de dor e tristeza dos demais; aumentava a esperança por dias melhores; a vontade de repaginar vidas, com recurso a letras garrafais, carregadas de positividade.

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