quinta-feira, 26 de junho de 2025

                 Mamã, Já Não Estás Entre Nós"

No dia 28 de maio de 2025, a minha vida parou. Foi nesse dia que a minha mãe, Maria Ngovene, partiu para sempre precisamente no dia em que completaria 76 anos de vida. O que deveria ser um momento de celebração e gratidão à vida tornou-se um dos dias mais tristes da minha existência. Mas a verdade é que Deus já me estava a preparar para aquele momento.

No início de maio, enquanto fazia tarefas domésticas, ouvi claramente uma voz sussurrar aos meus ouvidos:

"Brevemente, estarás a cantar aquela música muito cantada nos funerais."

Sem entender o sentido daquilo, comecei a cantar, num tom baixo, quase automático… mas não dei muita importância. Hoje, olhando para trás, vejo que aquele foi o primeiro sinal

Na manhã da partida da minha mãe, eu estava em missão de trabalho, a cobrir uma sessão parlamentar na qual participava a Primeira-Ministra Maria Benvinda Levi. Subitamente, recebo uma chamada da minha sobrinha Maria, chará da minha mãe  completamente desesperada, aos prantos, sem conseguir articular uma frase inteira. Só repetia:

"Tio Carlos... Tio Carlos..."

O meu íntimo já sabia. Algo em mim dizia que aquele era o telefonema que um dia eu temia receber.

Avisei o assessor de imprensa e os colegas que estavam comigo e fui dispensado. Fui deixar o carro em casa, na Zona Verde da Matola, onde encontrei uma multidão em silêncio à minha espera. A dor já pairava no ar.

Estavam todos à espera que eu levasse o corpo da minha mãe à morgue. Contactei a Funerária Moçambicana, que prontamente removeu o corpo, e seguimos para a Morgue do Hospital Provincial da Matola.


Ali, ao entrar naquele ambiente gelado e impessoal, vivi uma das experiências mais duras da minha vida.Vi corpos sem vida de homens, mulheres e crianças. Uns cobertos, outros expostos… A visão era brutal.Aquelas imagens ficaram cravadas na minha mente e tornaram-se pesadelos recorrentes. Não desejo essa vivência a ninguém.

Foi nesse momento que percebi algo com profundidade:Na morgue, tudo termina. Vaidade, orgulho, mágoas, discussões e até o ódio acabam ali. O que permanece é apenas o corpo, imóvel e silencioso.


É duro ser homem. É duro ser o responsável por conduzir a despedida de quem te deu a vida. Mas fui eu quem cuidou da minha mãe até ao seu último descanso.

Eu entrei na morgue. Vi o seu corpo frio. Logo após deixar o corpo, senti uma dor intensa e inexplicável nos dois braços. Dormi com essa dor e acordei com ela, como se fosse um peso espiritual que o meu corpo carregava.

No dia seguinte, acompanhado pelo  tio Carlos, irmão mais novo do meu pai já falecido, fui à morgue para tratar do processo de óbito. Depois seguimos até ao Cemitério de Lhanguene, o local onde a minha mãe, ainda em vida, pediu para ser sepultada  junto do seu falecido esposo, meu pai.

Após tratarmos da papelada, comentei com o meu chará:

"Já que estamos aqui, por que não levamos um pouco de água para pôr na campa do seu irmão?"

Ele concordou. Comprámos uma garrafa de 5 litros ali mesmo no cemitério.

Ao aproximar-se da campa, o meu chará disse em voz alta:

"Meu irmão querido, estamos aqui para informar que a tua esposa, mãe dos teus filhos, já não está mais entre nós. Segundo a sua vontade, será sepultada aqui ao teu lado, onde repousas em paz."

Eu também me aproximei e, enquanto lavava a pedra mármore da campa, falei:

"Papá, estou aqui para te informar que a mamã já nos deixou. Ela será sepultada aqui, conforme me disse um dia, há muitos anos."

Naquele exato momento, algo milagroso aconteceu:

A dor dos meus braços desapareceu por completo. Como se aquela conversa com os meus pais tivesse trazido alívio ao meu corpo e à minha alma. Até hoje me pergunto o que isso significou. Mas ninguém estava ali para me dar uma resposta.

A minha mãe foi sepultada no dia 4 de junho de 2025. O velório teve lugar no próprio cemitério, com a presença de familiares vindos de Gaza, África do Sul e outras partes. A cerimónia foi conduzida pela Igreja Zion, a mesma onde a minha mãe professava a sua fé. O pastor Bila foi quem dirigiu o culto fúnebre.

Fui eu quem cuidou da minha mãe até ao seu último suspiro terreno. Fui eu quem entrou na morgue e viu o seu corpo estatelado, imóvel, dentro daquela gaveta fria. Mandei preparar o ‘’xiyambalo’’, o vestuário tradicional da igreja que ela tanto respeitava.

Fui eu quem fechou a tampa do caixão.

Fui eu quem leu a última mensagem em nome dos filhos.

 

Mensagem lida no velório e sepultamento da minha mãe

Meus irmãos, familiares, vizinhos e amigos,

Hoje é um dia mais difícil das nossas vidas. Nossa mamã partiu justamente no dia em que completaria 76 anos. Já tínhamos começado a preparar o seu bolo, pensado nas palavras para lhe dizer, no abraço para lhe dar. Mas, em vez de festa, vivemos um luto pesado. Um vazio que tomou conta de tudo.

É difícil aceitar que ela se foi. Difícil entender que aquela que sempre esteve ali, de repente já não está mais. Mas, ao mesmo tempo, olhamos para trás e percebemos que ela nos deixou. Nossa mãe foi mais que uma mãe. Foi coluna, foi chão, foi teto. Foi colo nos dias de tristeza e força nos dias de luta. Nunca se colocou em primeiro lugar. Sempre viveu para nos proteger, orientar e amar.

Ela foi mulher de fé, de trabalho, de coragem. Nos ensinou que a vida não é fácil, mas que com união, paciência e esperança, a gente vence. Suportou dores calada. Sorriu mesmo quando o coração estava cansado. Guardou lágrimas para não nos preocupar. Quantas vezes não percebemos tudo o que ela fazia por nós... e hoje, a sua ausência nos mostra o quanto ela era tudo.

Partir no dia do próprio aniversário… isso não é por acaso. É como se Deus quisesse mostrar que ela fechou o ciclo da vida com honra. Que cumpriu a sua missão até o fim. Foi chamada para celebrar a data no céu, onde não há dor, nem lágrima, nem sofrimento. Lá, onde os justos descansam.

A dor que sentimos é profunda. Mas também é profundo o amor, a gratidão e o orgulho de termos sido filhos de uma mulher tão especial. Cada um de nós carrega algo dela. Um jeito, uma palavra, uma lembrança. E isso, ninguém pode tirar.

Mãe, o bolo que prepararíamos hoje virou altar de saudade. As velas que acenderíamos em festa agora são orações para tua paz. Mas mesmo em meio à dor, te agradecemos por tudo. Pela vida, pela criação, pelos conselhos, pelos castigos com amor, pelos carinhos silenciosos, pelas noites acordadas por nossa causa. Te agradecemos por teres sido mãe com todas as letras.

Descansa, nossa rainha. Teu nome está escrito dentro de nós, para sempre.

Vai em paz, que aqui continuaremos unidos, como a senhora sempre quis.
E no meio do pranto, seguimos com a certeza: um dia, nos encontraremos de novo.

Amém.

 

                          FUNCHO


O homem por trás da
lente da independência
Fotos: #joaocosta
Publicado no Jornal Domingo 22/06/2025
Ao celebrarmos os 50 anos da independência de Moçambique, é imprescindível olhar para as imagens que, ao longo dessas cinco décadas, ajudaram a contar a história de um país em transformação. Poucos nomes são tão emblemáticos nesse registo visual como o de João Costa, conhecido simplesmente como ‘’Funcho’’. Sua lente não apenas capturou momentos decisivos da história moçambicana, mas também reflectiu as emoções, as lutas e as esperanças de um povo. Este é um olhar que vai além da técnica fotográfica: é um verdadeiro testemunho da alma de uma nação. Mas, afinal, quem é o homem por trás das lentes?
“Fora da fotografia e fora das lentes… é difícil responder. Sou fotógrafo, isso é certo, sou uma referência para muitos, mas sinto medo do que ainda devo fazer mais,” confessa ‘’Funcho’’, com a humildade dos grandes mestres.
Nascido em Viana do Castelo, Portugal, em 1951, Funcho chegou a Moçambique ainda bebé, com apenas seis meses de vida. O solo de Nampula, onde cresceu até os 14 anos, foi seu primeiro chão, onde pisou nos braços da mãe. Em seguida, mudou-se para então Lourenço Marques, onde começaria a moldar seu destino.
Estudante da universidade Lourenço Marques, iniciou na engenharia, mas o 25 de Abril e as mudanças do mundo o desviaram para o seu verdadeiro chamado: a fotografia.
“Minha paixão pela imagem começou com meu pai. Ele tinha uma máquina fotográfica que eu respeitava e, ainda criança, já tentava registar momentos com ela. Mas foi na universidade, trabalhando na associação académica, que comecei a levar a fotografia a sério,” lembra.
A primeira câmara profissional veio de uma surpresa do avô, que vivia no Japão. Era uma Nikon que marcaria o início de uma trajectória longa e dedicada. Funcho conta que trabalhou como fotógrafo na Faculdade de Medicina da Universidade de Lourenço Marques, produzindo imagens para pesquisas médicas e aulas, enquanto ainda era estudante.
Foi também repórter fotográfico para o jornal A Voz de Moçambique, da Associação dos Naturais, antes de seguir para o Jornal Notícias em 1974, ano em que a liberdade começava a despontar.
“Fui enviado para a Tanzânia para acompanhar a viagem do presidente Samora Machel, pouco antes da independência, em 1975. Estive presente na proclamação da independência no Estádio da Machava, capturando a alegria das pessoas naquele momento histórico,” conta Funcho.
Mas a fotografia, para ele, nunca foi só trabalho. Era paixão, era sustento, era vida. Mesmo diante da pouca valorização e dos meios escassos, quando os jornais publicavam imagens escuras, sem contraste e de baixa qualidade, ‘’Funcho’’ nunca abandonou a câmara.
“A fotografia não enriquece, mas dá vida. É o que me permitiu seguir em frente,” diz com um sorriso que carrega a marca do esforço.
No Instituto Nacional de Cinema, onde ingressou em 1977, continuou a aprimorar seu olhar, mesclando cinema e fotografia. Mas sempre fotografou, sobretudo a política e as figuras que moldaram a história moçambicana.
Fotografou Samora, Chissano, Mandela, Nyerere, Agostinho Neto, entre outros. Relembra, com poesia e realismo, as dificuldades e os desafios de ser fotógrafo em tempos de mudanças profundas: “Ser fotógrafo não era fácil. Não éramos levados a sério; éramos o segundo plano. E até hoje, essa luta continua. A mentalidade sobre a fotografia precisa mudar,” reflecte.
Ele também denuncia as restrições e o preconceito ainda presentes, quando fotografar parece algo proibido, vigiado, controlado. E denuncia a visão do fotógrafo como alguém que só busca dinheiro:
“Quando as pessoas veem a câmera, pensam logo em dinheiro. Mas é mais do que isso. É uma forma de contar histórias, de eternizar momentos,” afirma.
Funcho não hesita em lembrar o papel das imagens que capturou, não só de presidentes, mas de uma nação inteira em transformação, e conclui com um olhar firme, repleto de sensibilidade:
Ao revisitar as imagens de Funcho, percebemos que sua obra é mais do que um simples acervo fotográfico; é um arquivo vivo da memória colectiva moçambicana. Por meio de seu olhar atento e sensível, ele conseguiu eternizar a essência de um povo, suas vitórias, seus desafios e suas esperanças. Em tempos de rápidas transformações, o legado de Funcho nos lembra que a fotografia é, acima de tudo, um poderoso instrumento de preservação histórica e cultural. Ele não é apenas o homem por trás das lentes, mas um verdadeiro guardião da identidade moçambicana, alguém cuja paixão e compromisso com a imagem continuam a inspirar novas gerações.
Fotojornalista defende que a mentalidade sobre a fotografia deve mudar.























sábado, 21 de junho de 2025

 Deixem-me Fotografar!

Por Carlos Uqueio

Ser repórter fotográfico em Moçambique é, muitas vezes, um caminho solitário e cheio de obstáculos. Desde o início da minha carreira, tenho percorrido ruas, becos, mercados, bairros e praças com o objectivo de registar a vida como ela realmente é. Com a minha câmara, tento contar histórias do nosso povo. Histórias que não aparecem nas manchetes, mas que dizem muito sobre quem somos enquanto nação. Tento mostrar a alegria, a dor silenciosa, as conquistas invisíveis e as desigualdades que gritam em silêncio. No entanto, fazer este trabalho tornou-se, cada vez mais, uma luta constante.

Frequentemente, ao fotografar em locais públicos, sou abordado por pessoas com um  olhar assustador e palavras duras. Há quem pense que estou a invadir a privacidade dos outros ou a tirar proveito de suas imagens. Já me acusaram de estar a lucrar às custas da dor alheia, perguntando: “Vais vender a minha foto, não é?” ou exigindo que eu pague para fazer uma simples fotografia num espaço que pertence a todos. Já me disseram claramente que só poderia continuar a fotografar se deixasse algum valor, como se as ruas e praças fossem propriedade privada.

Essas situações revelam dois problemas graves. O primeiro é a falta de conhecimento sobre o papel do fotógrafo jornalístico na sociedade. O segundo é o crescimento de um ambiente hostil, de medo e agressividade, contra quem tenta mostrar a realidade do país através da imagem. E quando o medo fala mais alto que a empatia, perdemos todos. Porque uma sociedade que desconfia dos seus próprios contadores de histórias acaba por viver com os olhos fechados para a sua própria realidade.

O repórter fotográfico não é um intruso. Não é um ladrão de imagens, nem um espião da dor alheia. É um profissional que escolheu servir a verdade através do olhar. Com a câmara, procuramos documentar o que acontece no presente para que não se apague no futuro. Registamos momentos que, por vezes, ninguém quer ver, mas que são fundamentais para que se pense, se mude e se avance.

É essencial lembrar que os espaços públicos são de uso colectivo. Fotografar numa rua, num mercado, numa praça ou num transporte não deveria ser um acto proibido ou suspeito. Claro que é importante agir com ética e respeito. Quando se trata de retratos mais próximos, de rostos e expressões, o diálogo é necessário. A sensibilidade é parte do nosso trabalho. Mas ameaçar um fotógrafo, exigir dinheiro ou impedi-lo de trabalhar apenas por estar a cumprir a sua missão é uma forma de violência simbólica. E essa violência precisa ser discutida.

O que falta é educação cívica, visual e cultural sobre o valor da fotografia no jornalismo e no processo democrático. Muitas pessoas ainda não compreendem que a presença de um repórter fotográfico pode significar visibilidade para problemas esquecidos, reconhecimento para lutas locais, valorização de culturas e tradições. O repórter fotográfico é  um aliado importante na construção de uma sociedade mais justa e informada.

Quantas imagens, ao longo da história, mudaram leis, acordaram consciências e provocaram lágrimas sinceras? Quantas fotografias fizeram o mundo parar e olhar para aquilo que estava a ser ignorado? Muitas dessas imagens só existem porque alguém teve a coragem de estar presente com uma câmara na mão, mesmo sendo insultado, expulso ou ameaçado. E esse alguém podia ser eu. E tantas vezes, é mesmo.

Por isso, escrevo este apelo com o coração e a responsabilidade de quem acredita na força do que faz. Deixem-me fotografar. Respeitem o meu trabalho, mesmo que não o compreendam totalmente. Não me silenciem com desconfiança nem me afastem com intimidações. A câmara que levo comigo é muito mais que um equipamento: é uma extensão do meu compromisso com a verdade, com a história e com as vozes que precisam ser ouvidas.

Respeitar o repórter fotográfico é respeitar a verdade.

 

sexta-feira, 23 de maio de 2025

 Um “demónio” chamado: AVIATOR


Por: Carlos Uqueio

Numa era em que tudo cabe na palma da mão, da amizade à fé, do trabalho ao prazer, o vício também encontrou abrigo ali. O jogo de azar, que antes exigia portas pesadas de casinos e noites escondidas entre copos e fumaça de charrutos, agora se apresenta polido, colorido e sedutor nos nossos próprios telefones. E entre esses jogos, há um nome que tem feito estragos profundos em silêncio: Aviator.

Pode parecer apenas mais um aplicativo. Um avião que sobe e, quanto mais sobe, mais dinheiro promete ao apostador. A ilusão é simples: se clicar para "sacar" antes que ele caia, o jogador lucra. Mas se errar o tempo, perde tudo. Um jogo de reflexo, dirão alguns. Um passatempo. Mas quem já caiu nessa pista sabe que o Aviator não é jogo, é vício travestido de distração, um plano bem desenhado para aprisionar.

Conheci essa tragédia de perto. Um amigo meu, empreendedor humilde, montou um pequeno bar na zona. Contratou uma funcionária que parecia promissora. Para proteger o lucro diário, colocou um cofre e confiou a ela a tarefa de guardar o dinheiro ao fim de cada dia. Com boa-fé, atendeu ao pedido da empregada: que não aparecesse com frequência, pois ela queria lhe “surpreender” com altos lucros. O patrão acreditou. O tempo passou. E então, um dia, ele decidiu visitar o bar.

A cena que encontrou parecia saída de um filme de horror: prateleiras vazias, geleiras sem bebidas, o cofre arrombado, e a única coisa cheia era a vergonha no rosto da colaboradora. Ela, aos prantos, confessou:
“Boss, me perdoa... usei o dinheiro do bar para jogar Aviator. Fiquei viciada, achei que ia ganhar tudo de volta, mas, perdi.”

O prejuízo era maior do que o esperado. Todo o lucro acumulado tinha desaparecido. Não havia mais capital para repor o stock, pagar os fornecedores, cobrir as dívidas e reerguer a estrutura. Em poucas semanas, o negócio que levou anos para ser erguido teve de fechar as portas. O bar faliu. Literalmente. E não por falta de clientes ou má gestão, mas por causa de um jogo que, sorrateiramente, consumiu tudo.

Essa não é uma história rara. É uma epidemia digital silenciosa. O Aviator e seus semelhantes exploram o desejo humano pelo ganho fácil, pela sorte, pela superação das dificuldades financeiras num piscar de olhos. Mas não passam de armadilhas. Jogar parece simples. Começa com 100 meticais, depois 500, depois 1.000. E quando se dá por conta, não foi só o dinheiro que se perdeu: foi a paz, a sanidade, a confiança de alguém, o emprego, a dignidade e, como neste caso, o negócio inteiro.

Não se trata apenas de condenar o jogo. Trata-se de entender o mecanismo perverso por trás dele. O Aviator não premia estratégia. Ele manipula emoções. Alimenta a esperança e o desespero num mesmo clique. Cada rodada perdida carrega a promessa de que a próxima será a da sorte. É um ciclo vicioso, e como todo vício, ele começa pequeno, sedutor, e termina grande, devastador.

O problema, porém, não é só individual. É colectivo. Falta educação financeira nas escolas. Falta diálogo nas famílias sobre o perigo do lucro fácil. E sobra silêncio. O silêncio da vergonha de quem perdeu tudo, o silêncio de quem tem medo de admitir que está preso, o silêncio de uma sociedade que normaliza o vício.

É urgente educar. Precisamos ensinar aos jovens e também aos adultos que não existe riqueza sem trabalho. Que o dinheiro fácil, muitas vezes, cobra caro. Que toda aposta tem dois lados, e quase sempre quem ganha é a plataforma, não o jogador. Precisamos falar sobre controle o emocional, autocontrole, sobre a importância de pedir ajuda antes que seja tarde.

E, acima de tudo, precisamos resgatar a confiança nas formas honestas de crescimento. Trabalhar, poupar, investir com sabedoria, aprender a empreender. O jogo pode parecer uma solução rápida, mas é uma armadilha lenta. E o Aviator não leva ninguém para o céu, ele só ensina a cair, e cada queda é mais dolorosa que a anterior.

Se você está lendo este texto e conhece alguém que está a jogar demais, não o julgue. Converse. Oriente. Mostre que o buraco é real, mas que também é possível sair dele. Se você mesmo está preso nesse ciclo, entenda: pedir ajuda não é fraqueza, é o primeiro acto de liberdade.

O Aviator pode até decolar rápido, mas o pouso, quase sempre, é em ruínas. E nenhum sonho merece ser trocado por uma ilusão que termina em falência.

 

segunda-feira, 12 de maio de 2025

            Estátua de carne, alma de prata

Publicado no Jornal Domingo 11/05/2025
Em cada avenida da cidade de Maputo, há quem anda sempre apressado. carros “fast and furious”, vozes em alta frequência, corpos a correr atrás do sustento, do sonho, da sobrevivência. Mas no meio dessa coreografia urbana que não cessa, uma figura resiste ao movimento. Com os pés plantados na calçada e o olhar fixo no infinito, uma jovem mulher quebra todas as regras da pressa que caracteriza o quotidiano actual.
Ela está parada. E é exactamente por isso que se torna impossível não notá-la.
Seu nome é Misé Amarchande, tem 26 anos, vive no bairro de Infulene, zona da Manduca, no município da Matola. Encontrou na imobilidade uma forma de expressão. No meio do caos, ela é o silêncio que fala, a estátua viva que emociona. A sua arte não se aprende em manuais: nasce do peito, atravessa o corpo e se impõe no espaço público como um grito silencioso.
“Sou ousada, atrevida, não tenho medo de arriscar”, afirma, com uma convicção que não cabe em molduras.
Antes de vestir-se de prata para as ruas, Misé já tinha trilhado outros palcos. Modelo, actriz e mestre de cerimónias. A jovem sempre foi uma intérprete da vida. Mas foi no silêncio absoluto da performance estática que ela encontrou o seu verdadeiro palco. Após quatro anos longe das performances como estátua humana, decidiu voltar. A inspiração veio de uma inquietação pessoal: ela via homens a dominarem as ruas com esse tipo de performance, mas sentia falta da presença feminina.
“Fizemos dois dias de testes com o ‘Jovem Puro’, meu parceiro nesta jornada. E percebi que ainda tinha o equilíbrio, a concentração, o fôlego. Então voltei”, recorda.
Voltou com força. Não apenas com presença física, mas com uma energia que atravessa o cimento e alcança o coração dos que passam. E se para alguns ela é um detalhe estranho na paisagem, para outros é arte pura, coragem em estado sólido.
Ficar imóvel durante três horas seguidas, sem pestanejar, é mais do que resistência física, é um estado espiritual. Misé não apenas se cala: ela convoca silêncios.
O mais surpreendente é que ela nunca fez um curso específico. “O equilíbrio vem de mim mesma, do amor pela arte. Não aprendi isso com ninguém. É algo que me atravessa.”
Desafia o cansaço, o calor, a humidade e até à chuva. “Já actuei duas vezes debaixo de chuva. É o amor que me dá estabilidade. Mesmo quando tudo parece contra, o coração está firme”.
Há algo profundamente revolucionário em ver uma mulher ocupar, com tanta presença, o espaço público por meio do silêncio. Num país e num continente onde o corpo feminino tantas vezes é silenciado à força, Misé opta por silenciar-se voluntariamente, transformando esse gesto num acto de poder.
“As pessoas não acreditam que sou mulher. Dizem que esse é um trabalho pesado, que é coisa de homem. Mas isso só me dá mais força. Gosto de mostrar que podemos tudo.”
E pode mesmo. O público, principalmente as mulheres, aplaudem de coração. “O carinho das mulheres é especial. Saber que estou a inspirar outras mulheres, que elas se sentem representadas por mim, é uma das minhas maiores vitórias”.
A jornada de Misé começa quando o dia ainda está em silêncio. Acorda às quatro da manhã. Às cinco e meia, já está a caminho do ponto de encontro com o seu colega, “Jovem Puro”. Às seis, está em posição. Escolhe os lugares com cuidado: ruas movimentadas, praças com gente, cruzamentos onde a vida urbana acontece.
No palco improvisado de cimento e buzinas, ela assume a sua pose. E ali permanece. Enquanto tudo gira à sua volta, ela firma-se como farol.
A avó, curiosa e carinhosa, espera sempre que Misé chegue para ver as fotos do dia. A família não apenas aceita: acredita no seu caminho. É com eles que encontra o seu equilíbrio emocional.
Apesar de ainda não ser casada nem ter filhos, ela diz ter um lar cheio de amor e incentivo. “Toda a minha família acredita que vou longe com isto. E eu também acredito”.
Nas ruas, Misé convive com extremos. Há quem se encante, quem sorria, quem agradeça. Crianças que tentam imitá-la. Senhoras idosas que pedem uma foto, emocionadas. Olhares que se derretem em admiração.
Mas há também o outro lado. A ignorância, o preconceito. Homens que gritam das janelas dos carros: “Vai trabalhar, sua preguiçosa!”
“As pessoas não sabem o quanto é difícil manter-se imóvel por horas. Acham que estou ali a fazer nada. Mas tudo bem. Eu sei o que estou a fazer. E isso basta”.
Mesmo quando não responde a ninguém, mesmo quando não se move, Misé leva essas histórias para casa. Guarda os sorrisos, transforma os insultos em força.
Ela não se explica: ela existe. E isso já é bastante.
O seu sonho é internacionalizar-se. Mostrar ao mundo que Moçambique não é apenas terra de luta e sol escaldante, mas também berço de arte viva.
“Quero que o mundo veja que nós, moçambicanos, também podemos. Que também temos arte. Que também temos voz. Mesmo quando ela é muda”.
Nas ruas de Maputo, há uma mulher que permanece de pé. Não por teimosia, mas por fé. Fé em si mesma, na arte, e no poder de tocar corações com o corpo imóvel e a alma em chamas.
“Se tens um sonho, não esperes por apoio. Sê a tua própria iniciativa, sê a tua luz. Só nós podemos fazer por nós mesmos. E, quando fizeres por ti, os outros vão reconhecer e valorizar-te”.