Mamã, Já Não Estás Entre Nós"
No dia 28 de maio de 2025, a minha vida parou. Foi nesse dia que a minha mãe, Maria Ngovene, partiu para sempre precisamente no dia em que completaria 76 anos de vida. O que deveria ser um momento de celebração e gratidão à vida tornou-se um dos dias mais tristes da minha existência. Mas a verdade é que Deus já me estava a preparar para aquele momento.
No início de maio, enquanto fazia tarefas domésticas, ouvi claramente uma voz sussurrar aos meus ouvidos:
"Brevemente, estarás a cantar aquela música muito cantada nos funerais."
Sem entender o sentido daquilo, comecei a cantar, num tom baixo, quase automático… mas não dei muita importância. Hoje, olhando para trás, vejo que aquele foi o primeiro sinal
Na manhã da partida da minha mãe, eu estava em missão de trabalho, a cobrir uma sessão parlamentar na qual participava a Primeira-Ministra Maria Benvinda Levi. Subitamente, recebo uma chamada da minha sobrinha Maria, chará da minha mãe completamente desesperada, aos prantos, sem conseguir articular uma frase inteira. Só repetia:
"Tio Carlos... Tio Carlos..."
O meu íntimo já sabia. Algo em mim dizia que aquele era o telefonema que um dia eu temia receber.
Avisei o assessor de imprensa e os colegas que estavam comigo e fui dispensado. Fui deixar o carro em casa, na Zona Verde da Matola, onde encontrei uma multidão em silêncio à minha espera. A dor já pairava no ar.
Estavam todos à espera que eu levasse o corpo da minha mãe à morgue. Contactei a Funerária Moçambicana, que prontamente removeu o corpo, e seguimos para a Morgue do Hospital Provincial da Matola.
Ali, ao entrar naquele ambiente gelado e impessoal, vivi uma das experiências mais duras da minha vida.Vi corpos sem vida de homens, mulheres e crianças. Uns cobertos, outros expostos… A visão era brutal.Aquelas imagens ficaram cravadas na minha mente e tornaram-se pesadelos recorrentes. Não desejo essa vivência a ninguém.
Foi nesse momento que percebi algo com profundidade:Na morgue, tudo termina. Vaidade, orgulho, mágoas, discussões e até o ódio acabam ali. O que permanece é apenas o corpo, imóvel e silencioso.
É duro ser homem. É duro ser o responsável por conduzir a despedida de quem te deu a vida. Mas fui eu quem cuidou da minha mãe até ao seu último descanso.
Eu entrei na morgue. Vi o seu corpo frio. Logo após deixar o corpo, senti uma dor intensa e inexplicável nos dois braços. Dormi com essa dor e acordei com ela, como se fosse um peso espiritual que o meu corpo carregava.
No dia seguinte, acompanhado pelo tio Carlos, irmão mais novo do meu pai já falecido, fui à morgue para tratar do processo de óbito. Depois seguimos até ao Cemitério de Lhanguene, o local onde a minha mãe, ainda em vida, pediu para ser sepultada junto do seu falecido esposo, meu pai.
Após tratarmos da papelada, comentei com o meu chará:
"Já que estamos aqui, por que não levamos um pouco de água para pôr na campa do seu irmão?"
Ele concordou. Comprámos uma garrafa de 5 litros ali mesmo no cemitério.
Ao aproximar-se da campa, o meu chará disse em voz alta:
"Meu irmão querido, estamos aqui para informar que a tua esposa, mãe dos teus filhos, já não está mais entre nós. Segundo a sua vontade, será sepultada aqui ao teu lado, onde repousas em paz."
Eu também me aproximei e, enquanto lavava a pedra mármore da campa, falei:
"Papá, estou aqui para te informar que a mamã já nos deixou. Ela será sepultada aqui, conforme me disse um dia, há muitos anos."
Naquele exato momento, algo milagroso aconteceu:
A dor dos meus braços desapareceu por completo. Como se aquela conversa com os meus pais tivesse trazido alívio ao meu corpo e à minha alma. Até hoje me pergunto o que isso significou. Mas ninguém estava ali para me dar uma resposta.
A minha mãe foi sepultada no dia 4 de junho de 2025. O velório teve lugar no próprio cemitério, com a presença de familiares vindos de Gaza, África do Sul e outras partes. A cerimónia foi conduzida pela Igreja Zion, a mesma onde a minha mãe professava a sua fé. O pastor Bila foi quem dirigiu o culto fúnebre.
Fui eu quem cuidou da minha mãe até ao seu último suspiro terreno. Fui eu quem entrou na morgue e viu o seu corpo estatelado, imóvel, dentro daquela gaveta fria. Mandei preparar o ‘’xiyambalo’’, o vestuário tradicional da igreja que ela tanto respeitava.
Fui eu quem fechou a tampa do caixão.
Fui eu quem leu a última mensagem em nome dos filhos.
Mensagem lida no velório e sepultamento da minha mãe
Meus irmãos, familiares, vizinhos e amigos,
Hoje é um dia mais difícil das nossas vidas. Nossa mamã partiu justamente no dia em que completaria 76 anos. Já tínhamos começado a preparar o seu bolo, pensado nas palavras para lhe dizer, no abraço para lhe dar. Mas, em vez de festa, vivemos um luto pesado. Um vazio que tomou conta de tudo.
É difícil aceitar que ela se foi. Difícil entender que aquela que sempre esteve ali, de repente já não está mais. Mas, ao mesmo tempo, olhamos para trás e percebemos que ela nos deixou. Nossa mãe foi mais que uma mãe. Foi coluna, foi chão, foi teto. Foi colo nos dias de tristeza e força nos dias de luta. Nunca se colocou em primeiro lugar. Sempre viveu para nos proteger, orientar e amar.
Ela foi mulher de fé, de trabalho, de coragem. Nos ensinou que a vida não é fácil, mas que com união, paciência e esperança, a gente vence. Suportou dores calada. Sorriu mesmo quando o coração estava cansado. Guardou lágrimas para não nos preocupar. Quantas vezes não percebemos tudo o que ela fazia por nós... e hoje, a sua ausência nos mostra o quanto ela era tudo.
Partir no dia do próprio aniversário… isso não é por acaso. É como se Deus quisesse mostrar que ela fechou o ciclo da vida com honra. Que cumpriu a sua missão até o fim. Foi chamada para celebrar a data no céu, onde não há dor, nem lágrima, nem sofrimento. Lá, onde os justos descansam.
A dor que sentimos é profunda. Mas também é profundo o amor, a gratidão e o orgulho de termos sido filhos de uma mulher tão especial. Cada um de nós carrega algo dela. Um jeito, uma palavra, uma lembrança. E isso, ninguém pode tirar.
Mãe, o bolo que prepararíamos hoje virou altar de saudade. As velas que acenderíamos em festa agora são orações para tua paz. Mas mesmo em meio à dor, te agradecemos por tudo. Pela vida, pela criação, pelos conselhos, pelos castigos com amor, pelos carinhos silenciosos, pelas noites acordadas por nossa causa. Te agradecemos por teres sido mãe com todas as letras.
Descansa, nossa rainha. Teu nome está escrito dentro de nós, para sempre.
Vai em paz, que aqui continuaremos unidos, como a senhora sempre quis.
E no meio do pranto, seguimos com a certeza: um dia, nos encontraremos de novo.
Amém.