QUANDO O CRACHÁ ESCONDE UM LADRÃO: UMA AMEAÇA AO JORNALISMO ÍNTEGRO
Por: Carlos Uqueio
Nos últimos dias, circulou nas redes sociais uma denúncia tão absurda quanto real: pessoas, em especial jovens, têm se infiltrado em vários eventos públicos e privados voltados à comunicação, como seminários, fóruns, congressos e lançamentos, fingindo serem jornalistas. Usam crachás falsos, adoptam uma postura aparentemente profissional, fazem fotos, mexem no celular com expressão concentrada como se estivessem fazendo anotações e até fingem estar a fazer vídeos em directo. Mas a verdade por trás desta encenação é muito mais sombria: não estão ali para informar, apurar ou divulgar. Estão ali para se aproveitar. E pior, para roubar.
Sim, é exatamente isso: roubo. Telemóveis, câmeras fotográficas, mochilas, carteiras, bolsas, tudo o que estiver ao alcance dos olhos (e das mãos) destes falsos profissionais vira alvo. Aproveitam-se da estrutura dos eventos, da confiança natural que um crachá de “imprensa” inspira, e circulam com liberdade. Entram, se alimentam nos coffee breaks, somem durante as sessões e reaparecem nos momentos estratégicos como por exemplo no almoço para fazerem mais vitimas. É um esquema articulado, e em certos casos, repetido em diversos eventos com impressionante naturalidade. E essa prática, além de criminosa, representa uma profunda agressão ao jornalismo sério e íntegro.
Como fotojornalista, não consigo ver essa situação com qualquer leveza. Pelo contrário, ela me inquieta profundamente. O jornalismo é, por definição, uma profissão que deveria ser sustentada por valores como ética, responsabilidade e compromisso com a verdade. Já enfrentamos inúmeros desafios: desinformação, ameaças físicas e morais. Agora, ainda temos que lidar com o uso criminoso da nossa identidade? Isso é mais do que uma afronta , é uma tentativa de minar a credibilidade de uma classe que, apesar das adversidades, segue resistindo.
A banalização do crachá é outro ponto que merece atenção. Durante muito tempo, esse pequeno acessório serviu como símbolo de acesso e legitimidade: um sinal de que ali estava alguém a serviço da informação, alguém que merecia circular livremente para cobrir os bastidores, entrevistar os palestrantes, registrar imagens. Hoje, o crachá virou um objecto vulnerável, que pode ser facilmente replicado por qualquer pessoa com acesso a uma impressora ou a um programa de edição de imagem. E o mais grave: os critérios de concessão de acesso à imprensa, por parte de muitos organizadores de eventos, são frágeis ou praticamente inexistentes.
É preciso dizer, com todas as letras: o crachá não faz o jornalista. Assim como a bata não faz o médico e a toga não faz o compromisso diário com a apuração, com a escuta, com o senso crítico, com o interesse público. Fingir-se jornalista para cometer furtos é, portanto, duplamente criminoso: é roubo e é falsidade ideológica. E quando esse golpe se repete, sem reacção por parte dos organizadores ou das que representam a imprensa, há o risco de que a confiança social na figura do jornalista seja ainda mais corroída.
A resposta a isso precisa ser urgente. Eventos que reúnem a imprensa devem repensar seus protocolos. Não se trata de elitizar ou dificultar o acesso a estudantes ou profissionais independentes, mas sim de criar mecanismos mínimos de verificação. Um simples formulário online ou a apresentação de um perfil em rede social já não bastam. É preciso solicitar algum tipo de credencial válida, portfólio, comprovação de vínculo com veículo ou carta de intenção assinada. Medidas simples que poderiam, ao menos, inibir parte desse tipo de golpe.
Precisamos falar sobre isso em nossos espaços, nos encontros, nos congressos e também nas faculdades. O silêncio sobre este problema permite que ele cresça, normalize-se e se espalhe. A formação ética do jornalista começa muito antes da entrada em uma redacção, ela se constrói no modo como o futuro profissional entende sua responsabilidade diante da sociedade. Fingir-se jornalista para roubar é o oposto disso. É o fracasso da ética, da cidadania e da decência.
Muitos argumentam que “é só um lanche”, como se o crime se tornasse menos grave ao ser disfarçado de malandragem. Mas o roubo é roubo. E quando feito sob a máscara do jornalismo, ganha contornos ainda mais perigosos. Estes actos afectam a confiança que a sociedade deposita na imprensa. Já vivemos tempos em que muitos duvidam da informação legítima, atacam repórteres nas ruas, desacreditam orgãos de comunicação sérios. Permitir que o título de jornalista seja usado como fachada para o crime é contribuir para a queda final da credibilidade que tanto lutamos para preservar.
Por tudo isso, é necessário denunciar, expor e reagir. Os verdadeiros profissionais não podem permitir que seu ofício seja confundido com o oportunismo de alguns. Que fiquemos atentos, que observemos os rostos que aparecem e desaparecem nos eventos, que alertemos colegas e organizadores, que exijamos critérios mais sólidos. Defender o jornalismo é também zelar por sua reputação. Não há espaço para tolerância ou conivência quando se trata da ética profissional.
Aos que ainda confundem jornalismo com crachá: saibam que a força de um repórter não está no cartão pendurado ao pescoço, mas na seriedade do seu trabalho. O jornalismo verdadeiro se vê todos os dias, na rua, nas pautas difíceis, na coragem de perguntar, na persistência em apurar. E este tipo de jornalismo, aquele que honra a profissão, jamais será confundido com oportunismo, nem manchado por quem o utiliza como fachada para praticar crimes.
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