O dia em que a água não
nos levou
Texto: Carol Banze
Fotos: Carlos Uqueio
Publicado in 'jornal domingo'
Uma forte corrente de
água tomou parcialmente a viatura a todo terreno que nos transportava até
Macomia, na cobertura de uma nobre missão, após a passagem do devastador
ciclone tropical Kenneth. Era domingo, dia 28 de Abril último, passávamos pelo
posto administrativo de Mieze, à entrada do distrito de Metuge.
Os contornos da estrada
que nos levaria ao nosso destino tinham sumido das nossas vistas. Vimo-nos
envolvidos por uma fronteira líquida. Uma corrente feroz convidava-nos a todo o
instante a um destino tenebroso.
A força e imensidão
daquelas águas turvas, cuja dimensão semicerrava os olhos de quem se atrevia a
estender o olhar, deixavam-nos literalmente em cólicas.
Por alguns minutos,
ficámos entre a terra firme e o curso de água, que se precipitava em direcção
ao mar, a uma velocidade que beirava os 50 quilómetros por hora, emitindo um
som arrepiante e aterrorizante.
A nossa vida ficou
dependente de cálculos e de sorte. Muita sorte. Um cenário sinistro
desenhou-se. Seguir até Macomia era uma questão de escolha. Ou não. A verdade é
que Ave-marias foram rezadas em silêncio; os antepassados invocados numa busca
por forças naquela condição de adversidade.
O desafio estava
lançado. De qualquer modo, naquela condição de cegueira, uma luz guiou a mente
dos condutores que transportavam a nós, jornal domingo, e a distinta
lista de altas individualidades lideradas pelo Primeiro-ministro, Carlos
Agostinho do Rosário.
Louvados foram aqueles
homens que vestiram, momentaneamente, a pele de “marinheiros”; transformaram
veículos terrestres em embarcações aquáticas e tornaram possível a nossa
passagem rumo a Macomia.
A verdade é que toda a
gente, naquele momento, viu-se submetida à prova de temeridade e determinação.
Mas a odisseia não terminou por aqui, pois, percorridos alguns quilómetros,
fomos confrontados de forma directa pelo rio Mieze.
Ele encontrava-se
posicionado debaixo de uma pequena ponte, e era visível aos pulos, numa
tentativa infrutífera de trepar o asfalto, como consequência da chuva que caía
de forma ininterrupta.
De qualquer modo, havia
que seguir viagem, ainda que envoltos em dúvidas em relação ao regresso, afinal
a força das águas violentas já dera mostras de que não daria tréguas.
Naquele instante, o
futuro deixou de ser uma prioridade. Vivemos uma hora de cada vez. O presente,
sim, estava no cerne da questão, afinal milhares de pessoas aguardavam
encarecidamente por olhares complacentes, palavras de conforto e, sobretudo,
por um norte, que ia sendo transportado na coluna de esperança. Macomia
esperava por isso, e muito mais.
O que de forma
imaginária se sabia é que os estragos provocados pelo insaciável Kenneth haviam
criado chagas quase incuráveis. Já no terreno, de localidade em localidade,
distrito em distrito, o pesadelo ganhou forma e apresentou-se aos olhos de
todos.
Várias mulheres,
algumas trajadas de djubôs e turbantes coloridos, acompanhadas dos homens
daquelas terras, encontravam-se posicionadas aos magotes, ao longo da estrada.
Em Meluco, Roma, exibiam olhares atónitos, que expressavam incertezas.
Os contornos dos seus
corpos estavam expostos, tudo por culpa de cada gota indisciplinada e assassina
da chuva que teimava em cair. As poses eram únicas e invariáveis: de braços
levantados até à altura do peito, tremendo de frio, rangendo os dentes,
sofrendo de fome….
Como não? A passagem do
ciclone apagou o sorriso e o alento em cada uma daquelas respeitáveis figuras
que fitavam o olhar em nós clamando por qualquer ajuda.
A tempestade tinha
derrubado as construções locais, infra-estruturas que se estendiam tipicamente
ao longo da estrada, cujo desenho lembra a figura de um nyamussoro
(curandeiros) de chapéu, sentado, vestido adequadamente para o acto de fembar
(detectar espíritos); tirou-lhes as machambas, as árvores....
E a nossa viagem
seguia, os minutos passavam, as distâncias ultrapassadas. A dada altura, a
vila-sede de Macomia revelou-se totalmente devastada: edifícios
administrativos, casas, escolas, hospital, praticamente desnudos. Os postes de
energia estavam tombados. Na berma da estrada, via-se uma instituição bancária
apenas resguardando, no meio de ruínas, a caixa 1, caixa 2 e caixa 3.
Kenneth levou consigo a
dignidade de pessoas, condicionou o seu direito à educação, à saúde; amputou o
privilégio de progredirem na vida.
Milhares de famílias
ficaram sem tecto, sem chão, sem parede, sem vida. Corações foram destroçados.
A tempestade roubou o bem mais precioso que existe no universo: a vida, de
dezenas de pessoas.
O retrato da desgraça
ficou fixado, na só em Macomia mas também, desde o dia 24 de Abril, em locais
como Ibo, Quissanga, Mocímboa da Praia, só para citar alguns exemplos.
Entretanto, a cidade capital da província, Pemba, para onde regressámos sem
sobressaltos após a atribulada viagem, não escapou dos resquícios da funesta
ocorrência.
Conquistas obtidas ao
longo de vários anos foram colocadas terra abaixo. O desempenho de famílias
esforçadas transformado em entulho.
Em Pemba, o lendário
Cariacó, que acolhe a história de várias origens, foi colocado de bruços. Não
só este extenso pedaço de terra, mas também Natite, outro bairro também colado
à capital. Ficou abarrotado de água e abriu-se pelas costuras, agravando a
condição das respectivas vias de acesso. Em Ingonani, terra da Raínha Mariamo e
seus “súbditos”, várias residências desmoronaram. O muro da marinha cedeu.
Salas de aula, em Paquitequete, ficaram descobertas. As chapas que lhe cobriam
o tecto voaram metros abaixo, depois de ficarem retorcidas devido à força dos
ventos.
De qualquer modo, o
renascer de alguma esperança por dias melhores estava depositado no rosto
cândido e iluminado de uma criatura de poucos dias de vida, que, aconchegada
nos braços da sua mãe, dentro de um centro de acolhimento, contradizia toda a
expressão de dor e tristeza dos demais; aumentava a esperança por dias
melhores; a vontade de repaginar vidas, com recurso a letras garrafais,
carregadas de positividade.