Maputo à noite
Se depois de passar o dia ocupado com os afazeres do quotidiano ainda sobrar forças para apreciar a noite, a cidade de Maputo oferece vários atractivos, mau grado a pandemia causada pelo novo coronavírus, condicionar em demasia a vida. As opções vão desde restaurantes com menus de dar água na boca e locais para ouvir música, enquanto se bebe uma cerveja bem gelada e outros cocktais, para além de conversar com amigos e familiares.
A noite chega tingindo de cinza os prédios e as gentes. As luzes, dos postes e da montras, iluminando a floresta de concreto, conferem aos rostos dos transeuntes um ar misterioso. Curiosamente, enquanto o grosso das pessoas corre para o aconchego e segurança das suas casas, também há os que despertam do sono diurno com fome de viver. A cidade, aos 134 anos, se renova. A escuridão chega de mansinho. A cidade que celebra a luz, vê as sombras agigantarem-se.
Maputo, já foi Lourenço Marques. O município foi criado em 1875, e elevado a categoria de cidade em 10 de novembro de 1887. A sua importância estratégica fez com que em 1898 a capital fosse transferida da Ilha de Moçambique para a então Lourenço Marques.
É essa mesma cidade que hoje é cantada a plenos pulmões pela Sheila Jesuita na canção Maputo Tem”: “Em Maputo também tem Xipamanine, Chamanculo/Tem Maxaquene/Tem a zona com a malta sentada lá no muro”. Noutro momento sibila que “Em Maputo tem aquela titia das badjias/Com muitos fiosses na Bacia/Maputo só sabe quem te vê”.
Mas há uma outra Maputo que só sabe quem a vê quando a noite cai. Essa, já não tem tanto Chapa 100 e nem a Zinha com a magumba de 100. É uma cidade fantasmagórica, em muitos dos seus cantos. Ali, por exemplo, na “Laurentina”, onde de dia mal se vê o chão por causa da quantidade de gente e coisas estendidas nos passeios, quando a noite cai, reina ali um silêncio de cortar à faca.
E o domingo descobriu um fenómeno “novo”; as pessoas que trabalham na zona baixa da cidade e que precisam de apanhar o “chapa 100”, juntam-se em grupos para poderem subir a “Guerra Popular” até a Av. 24 de Julho com alguma segurança. Dizem que nas sombras, escondem-se perigos vários.
Mas é nas sombras, mais exactamente nas entradas dalguns prédios, ou vãos de escadas que outros buscam repouco. É vê-los um pouco por toda cidade. Alguns são guardas em serviço; outros, apensa desabrigados que, em papelões buscam aquecer os seus já maltratados corpos.
A noite, Maputo oferece, ainda que timidamente, muito por culpa da Covid-19 e das restrições afins, tem alternativas para todos os gostos e embora nos fins de semana os lugares fiquem mais movimentados, também há boas opções para sair durante a semana.
A baixa, com a Feira de Maputo, tem vários bares e casas noturnas. Por ali, você pode curtir os shows de ilustres desconhecidos que procuram atrair clientes interpretando êxitos de outros artistas, dançar um pandza ou passada, ou bebericar alguma coisa. Muita gente também frequenta as zonas escuras das ruelas da baixa procurando opções para um happy hour.
Nessa busca, é só parar o carro que muitas trabalhadoras de sexo, cada uma a seu jeito, se aproximam e sem pejo na lingua, falam dos preços e outras nunaces. Depois, cliente e trabalhadora, refugiam-se em parques de viaturas quando não são engolidos pelas escadas das pensões e hoteis ali na zona da “Bagamoyo”. Aquela é uma parte obscura da cidade que a mantém pulsante durante a noite. Há um mundo a parte naquela zona encaixada entre a Praça 25 de Junho e a desertica Praça dos Trabalhadores.
Alguns polos gastronômicos e de bares criados na cidade também são interessantes para viveralguns momentos a noite, especialmente se você é daqueles que prefere sitios movimentados. Desses polos gastronômicos há uns que são mais frequentados do que outros mas, o que é comum entre eles, é a boa música que jorra aos borbotões para gaudio dos comensais que, nalgumas vezes, acabam falando um bocadinho mais alto… sem que isso incomode os demais. Interessante!
Há também um fenómeno que não sendo novo, ganha espaço: a transformação de residências em galerias, restaurantes e ou bares. Estão um pouco por toda a cidade, incluindo a chamada zona nobre. Nesse locais, juntam-se pessoas àvidas de relaxar um pouco.
A cidade que em 1841-1844 tinha apenas 19 casas de madeira e zinco e só muitos anos depois testemunhou a construção das primeiras casas de alvenaria, tem hoje prédios com mais de 20 andares espalhados por todos os lados… e outros estão sendo construidos a um ritmo capaz de fazer o próprio Lourenço Marques revolver-se na tumba.
A noite lugares de interesse turístico - e são bastantes - que contam um pouco a história não só do nosso país, mas sobretudo da própria cidade, ficam silenciosos. Isso contrasta, naturalmente, com a maneira de ser das gentes daqui… é que apesar das dificuldades, somos um povo alegre.
A Fortaleza da Nossa Senhora da Conceição ou Fortaleza de Maputo, onde é possível ver de perto o caixão com os restos mortais de Ngungunhane, o imperador de Gaza, tem um interessante acervo histórico, incluindo uma imponente estatua de Mouzinho de Albuquerque, captor do primeiro.
Claro que, tanto a Fortaleza, como o Museu de História Natural, o Centro Cultural Franco-Moçambicano, a Fundação Fernando Leite Couto ou o Centro Cultural Brasil-Moçambique tem de ser visitados `luz do dia. A noite, são silenciosos, quase fantasmagoricos. É tanta ausência de vida… vale o mesmo para o imponente edifício da Estação dos Caminhos de Ferro… a luz frontal, confere ao lugar um ar misterioso. Mesmo a noite, dá a impressão de se ouvir ao de longe, o silvo dos comboios. Magia da noite!
Outros locais que fervilham de dia, mas a noite quedam-se silenciosos - sem perderem a majestade - são o Mercado Central, obra de David de Carvalho, inaugurado em 1901, o Mercado de Peixe e o incontornável Feima, a Feira de Artesanato, Flores e Gastronomia de Maputo. Desenhada pelo frances Gustavo Eiffel, em 1882, a Casa de Ferro, junto do Jardim Botânico Tunduru (criado em 1885 pelo paisagista inglês Thomas Honney), lembra-nos que há mais para ver apesar da ausência do sol.
Subindo, em direcção ao belíssimo edificio do Conselho Municipal, a ampla praça acolhe a estátua do primeiro presidente de Moçambique independente, Samora Moisés Machel, falecido em 1986 num acidente de aviação, tendo à ilharga a Sê Catedral. O conjunto dá uma imagem interessante, sobretudo pelo jogo de luzes ali instalado.
E falando de catedrais, vale a pena ver na calada da noite a silenciosa Igreja católica St. António da Polana, a Mesquita da baixa - Jumma Masjid - ou a Mesquita Central de Maputo - Masjid Taqwa - que cortam os ares com as suas formas peculiares. Há uma bebeza que só é possível usufruir quando o sol recolhe e o movimento de pessoas reduz-se ao mínimo possível… até porque as noites são usadas também para obras de manutenção das nossas maltratadas estradas…
Hortêncio Langa, no seu poema sobre a cidade, disse qualquer coisa como “O Índico é uma janela aberta/A novas descobertas”, antes de proclamar “Quem te abraça/ não te larga mais”. Pois é poeta-cantor, quem passeia pela “Marginal”, desde o embarcadouro até a Aldeia dos Pescadores, pode confirmar a magia de Maputo. De um lado, as águas do mar e, do outro, edifícios imponentes…e uma série de lugares para degustar iguarias marinhas sem paralelo.
Porém, a cidade tem cada vez menos espaços para o teatro e cinema. Salas como Cine África, Gil Vicente ou Charlot “renderam-se”; já não acolhem eventos… e nem é por causa da pandemia mas da incuria dos homens. Triste. Aqueles espaços, tanto de dia, como de noite, são sombras de um passado glorioso. Ficaram só memórias nas cinzas de uns e nas paredes de outros.
Sobra ainda o “Avenida” e o “Gilberto Mendes”. A antiga Associação Cultural Txova Xita Duma cedeu e agora o espaço está a crescer em altura. Está a nascer um edificio ali. As artes e cultura, minguam na nossa cidade embora, nas mesmas bandas, o Núcleo de Arte continue a remar contra a maré.
A mesma cidade que tem prédios de vidro, está impregnada pela magia de Xipamanine, Mafalala, Urbanização, Maxaquene, Albasine, Laulane que, quando o sol volta, largam - como abelhas que se libertam das colmeias - milhares de pessoas que cruzam as arterias da cidade para emprestarem o seu saber e suor para que a cidade renasca das sombras da noite. E o ciclo se encerra, ao mesmo tempo que recomeça. É Maputo!