Maziones:
Quando a fé se mistura ao som do batuque
Texto e fotos de Carlos Uqueio, publicado no jornal domingo
Logo ao amanhecer, quando a maré ainda lambe a areia da praia de Costa do Sol, grupos de homens, mulheres e crianças caminham em silêncio, vestidos de verde, azul, branco ou vermelho. São os crentes da Igreja Sião, mais conhecidos por maziones que, quase todas as quartas-feiras de todas as semanas, fazem da praia o seu templo. Ali, em contacto com o mar e o vento, buscam força, purificação e renovação espiritual.
O batuque, marca da identidade dos maziones, começa a ecoar logo cedo. O som grave acompanha os cânticos e dá ritmo às orações. Para quem passa de carro ou a pé, pode parecer apenas música. Mas, para quem está ali, é mais do que um som: é um elo com o divino, um chamado à presença de Deus e dos antepassados.
Apesar de serem parte da comunidade há décadas, os maziones ainda convivem com o preconceito. “Chamam-nos de vhaloi nzinwine”, conta Paulo Almeida, fiel há 28 anos. “Mas são os mesmos que, na calada da noite, vêm pedir ajuda quando têm problemas que ninguém mais consegue resolver.”
O domingo foi ao encontro desse contraste que é parte da história desta seita: criticados em público, mas procurados em silêncio,mas os fiéis seguem firmes na sua fé.
Quartas-feiras de renovação
Às quartas-feiras, a praia vira um espaço de encontro espiritual. O barulho do mar mistura-se com os cânticos, e os fiéis mergulham os pés na água num gesto de entrega. “Aqui sentimos a presença do Espírito Santo de uma forma única”, explica Maria César. “É como se a água levasse as nossas angústias e nos desse força para continuar.”
Para muitos, o mar é símbolo de limpeza espiritual, um ritual que renova não só a fé, mas também a disposição para enfrentar os desafios do dia a dia.
‘’Fembar’’: invocando ancestrais e expulsando o mal
Entre as práticas mais actuais e marcantes da Igreja Zione está o ‘’fembar’’, um acto de invocação espiritual que busca afastar espíritos maus ou aliviar o sofrimento de quem procura ajuda. No passado, os maziones actuavam de forma diferente: usavam a água salgada da praia, velas, oração e a Bíblia como seus principais “escudos” para curar, aconselhar ou expulsar demónios. Hoje, porém, já é comum ver alguns que, além desses métodos tradicionais, também recorrem ao ‘’fembar’’, prática antes associada apenas aos curandeiros, que consiste em invocar e “pegar” espíritos sejam de antepassados ou espíritos maus no corpo dos crentes, como parte do processo de libertação espiritual.
“Cada pessoa recebe um dom diferente”, defende Pastora Delfina, uma das crentes mais antigas nesta congregação. “Há quem tenha recebido o dom de curar, outros de aconselhar, outros de libertar. Existem até aqueles que nasceram com o dom para ser curandeiro, mas, como os ‘’charas’’ não querem, acabam aceitando que eles trabalhem dentro da igreja, usando os rituais dos maziones. O importante é ajudar quem sofre.
Fé que resiste ao preconceito
Para os fiéis, a roupa e os batuques são símbolos de fé e compromisso espiritual. Para muitos vizinhos, porém, ainda são motivo de insultos e desconfiança.
Amanda Orlando,crente que encontrou na Zione apoio durante uma doença mental, diz que aprendeu a lidar com essas críticas. “Já me chamaram de feiticeira, mas sei o que esta igreja fez por mim e pelas minhas filhas. Essa força ninguém tira.”
E, ironicamente, são muitas vezes os críticos que, quando enfrentam dificuldades, acabam por pedir ajuda. “Quem chama nomes durante o dia, vem pedir oração à noite”, resume Amanda, com um leve sorriso.
Entre o mar, batuque e esperança
A fé dos maziones vai muito além da praia, mas é ali, entre o mar e a areia, que se fortalece a ligação com o sagrado. Cada onda que quebra parece lembrar-lhes da própria vida: em constante movimento, cheia de desafios, mas também de oportunidades de renovação. É nesse espaço aberto que encontram coragem para enfrentar o preconceito, lidar com as críticas e, acima de tudo, manter viva a prática de ajudar quem precisa, mesmo quando reconhecimento ou gratidão não chegam.
O batuque ressoa como um pulso colectivo que une a comunidade. Os cânticos, as orações e os gestos de entrega formam um ritual que mistura disciplina, fé e tradição, criando uma ponte entre o visível e o invisível. Ali, os fiéis encontram força para carregar os fardos do dia a dia, para enfrentar problemas pessoais, familiares ou espirituais, e para acreditar que cada desafio pode ser transformado com fé e determinação.
Mesmo diante do estigma, da desconfiança e das vozes que ainda os chamam de vhaloi nzinwine, os maziones seguem firmes. Eles sabem que, por trás das críticas, existe também a necessidade das pessoas de encontrar apoio, orientação ou consolo. No silêncio das noites, aqueles que um dia os julgaram acabam, cedo ou tarde, a bater à porta da igreja em busca de uma palavra, de uma oração, de um gesto simples que traga alívio, esperança ou paz.
E é justamente nessa persistência, nesse equilíbrio entre fé e prática, entre tradição e transformação, que a Igreja Zione se revela: não apenas como um espaço de culto, mas como um refúgio seguro, um ponto de encontro de almas que buscam renovação, e uma comunidade que aprende, a cada dia, a resistir às adversidades e a manter acesa a chama da fé.