quarta-feira, 9 de junho de 2021

                                                     RECUPERAÇÃO DE AVC

          A locomotiva da esperança

Texto-Eduardo Changule

Fotos-Carlos Uqueio

Publicado no Jornal domingo
06.06.2021




É uma arena onde se trava uma luta para reparar danos sofridos pelo tão temido Acidente Vascular Cerebral (AVC). Falamos do campo do Ferroviário das Mahotas, localizado nos arredores da capital do país, Maputo. Aqui, várias batalhas são travadas com aquele inimigo que, cada vez mais, se torna tão comum, quanto indesejado. Tudo é feito nas sombras da madrugada.

 O que se nota é que, para quem passo-a-passo, apoiado numa bengala, arrastando a perna, por vezes de braço encolhido, lutava para ressuscitar os tecidos e resgatar os movimentos,  por ali encontra a locomotiva de esperança por uma vida melhor.

Pois é mesmo isso que acontece com os doentes que para lá acorrem diariamente  de movimentos condicionados. Pessoas que se levantam muito cedo, antes do sol raiar.  

domingo viu-as empenhadas, até mesmo antes do apito que os orienta para os movimentos coordenados sob a mira de um coach. Alguns adiantavam os exercícios de aquecimento, a centímetros dos seus colegas de jornada, que ainda se apresentavam com passos tímidos, pisando o chão com a ponta dos pés, afinal caminhar sem dificuldades, para estes, ainda constitui uma obra por concluir.

São pais e mães que viram os seus movimentos musculares paralisados devido aos efeitos da doença e, por causa disso, muitos perderam os respectivos empregos. Cada dia passou a ser uma oportunidade para voltar ao melhor de si. Na realidade, o futuro servirá para recuperar um passado infeliz, que chegou a desencadear outros problemas, principalmente os de de natureza social e financeira.

 

                                                   AO SOM

                                                  DO APITO

 

E, finalmente, o apito soa. Todos reduzem a marcha, desviam as atenções para dentro do campo onde, antes de tudo, num canto lavaram as mãos com água e sabão, para começar a ginástica.

Estendem as capulanas e mister Agostinho começa a orientar os movimentos. Com alguma limitação notável, dobram e estendem os músculos em várias posições durante cerca de uma hora.

Finda a primeira parte do processo,  para um momento de oração antes de orientações específicas em que, cada um, é chamado a fazer exercícios de acordo com o seu objectivo, afinal são pessoas com casos diferentes: há quem pretende recuperar os movimentos do braço, da perna, cintura.

A iniciativa sem nome, sem emblemas e nem representantes, actualmente conta com cerca de 60 pessoas, sendo 53 doentes com nomes, contactos, peso e idade registados numa sebenta do treinador. Os restantes são indivíduos principiantes ainda com alguma participação sazonal.

 

                                                RESGATE DE

                                                AUTO-ESTIMA

 

Nunca faltam almas generosas, como a do coach Agostinho Tomás, treinador de atletismo no clube Ferroviário das Mahotas que hoje, além de preparar os atletas do clube, se tornou orientador de ginástica para doentes de AVC e outras enfermidades desde 2018, sem cobrar sequer um vintém . “Temos pessoas que sofrem de hipertensão, obesidade, diabetes entre outras doenças, bem como as que vêm por questões de estética”, referiu.

Tomás disse que muitos dos pacientes assistidos naquele local acabam encontrando um lar onde desenvolvem relações de amizade uma vez que, com a doença, a maioria acaba se sentindo inferior na sociedade e nos lares.

Quando essa doença te encontra, na maioria das vezes, até o parceiro começa a fugir de ti ou a te desprezar”, razão pela qual “muitos não conseguem supera-la, porque o stress aumenta e a doença piora, mas a convivência que encontram aqui acaba ajudando tanto quanto a ginástica”, explicou.

Em seguida, contou com alguma satisfação que todos que chegaram ao campo sem andar já andam ou, pelo menos, fazem alguns movimentos próximos disso. “Temos doentes que, mesmo com algumas sequelas, se recuperaram e voltaram às suas actividades normais inclusive ao trabalho”.

Além desses, mister Agostinho conta com sete “pacientes” que, devido a condição em que se encontram, recebem assistência ao domicílio. Eles vivem em bairros diferentes. “Esses doentes, que dou treinos a partir das suas casas, acabam sofrendo um pouco porque nem sempre tenho tempo para os visitar”, lamentou.

Facto interessante é que o mister do bem não cobra nada pelo que faz. Não consigo cobrar. São pessoas que estão doentes e precisam de apoio. Enquanto eu puder, vou trabalhar com eles até conseguirem se movimentar”, disse.

 

MEIOS SÃO

UM DESAFIO

 

Apesar dos êxitos alcançados, com o resgate dos movimentos dos doentes, o treinador aponta para alguns desafios enfrentados, por um lado, na prática dos exercício e, por outro, no âmbito da segurança pessoal.

Segundo afiançou, torna-se muito arriscado para si trabalhar com doentes sem meios de protecção, uma vez que não pode ignorar a possibilidade de haver pessoas com enfermidades transmissíveis.

Já tivemos aqui algumas pessoas suspeitas de sofrerem de tuberculose, mas que não foram honestas o suficiente para contarem isso quando chegaram”, lamentou.

Acrescentou, entretanto, que o facto de estar a trabalhar sozinho dificulta a orientação de alguns doentes com uma estatura física relativamente maior. Além disso, o mister afirmou que a falta de tapetes e outros equipamentos básicos faz com que a roupa de treino dos participantes se suje muito, facto que constitui constrangimento, tratando-se de pessoas algumas das quais não têm capacidade de a lavar.

Ainda sobre esta questão, lembrou que, “antes da Covid, eu ia pedir caixas de papel no armazém para eles usarem como tapete, mas para evitar contaminações, tive que suspender esta acção, e agora cada um vem com uma capulana”, relatou.

 

 

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            

- Jaime Bejamim Macuácua

 

Está em processo de vencer o AVC. Antes de ser acometido por esta doença, trabalhava como transportador de passageiros a longo curso. Com a doença que o deixou paralítico, sem trabalhar e com o seu mini-bus avariado, não consegue pagar taxi para ir às sessões de fisioterapia no Hospital Militar de Maputo.

Com efeito, faz ginástica no campo do Ferroviário, há sete meses. Lembra que, no princípio, chegava montado às costas devido a incapacidade de se locomover: “precisava de alguém para me carregar, para vir e voltar para casa. Mas, hoje em dia, caminho para onde quero, sem companhia”.

Ainda com o braço esquerdo incapaz de se flexionar com precisão, saúda a iniciativa dos treinos naquele local que, segundo relata, lhe trouxeram de volta à vida, sem se esquecer do apoio da esposa, quem hoje arca com as despesas da casa.

Sobre os treinos, disse que a falta de alguns materiais como tapetes e esponjas constituem desafio: “quando são dias de chuva, em que a terra fica húmida, torna-se complicado nos deitarmos no chão mesmo estendendo capulanas”.

 


 

Não conseguia me levantar

 

 

- Marlene Banze de 59 anos de idade

 

É mãe e dona de uma patente de Polícia. Chegou ao campo do Ferroviário das Mahotas, há dois anos, num estado que ela própria considera como péssimo.“Nem me sentar conseguia e precisava de alguém para me ajudar a levantar”.

Disse que  a doença tomou seu corpo em 2014, após um acidente que deixou seu filho mais velho paralítico e inconsciente. No ano seguinte, outro filho perdeu a vida, e tudo parou, inclusive as articulações musculares do lado direito.

Desde aquele ano, Banze ficou parada na vida e nos movimentos do corpo: “a paralisia já estava começar a atacar o meu lado esquerdo. Mas, há dois anos, estou a tentar me reerguer aos poucos. Venho aqui ao campo e faço movimentos para um dia voltar ao activo”.

Contra todos os preconceitos e abandono por parte de familiares, diz que já consegue se sentar na esteira, de onde consegue se levantar sem ajuda. Além da reabilitação física, ganhou esperança de ver o filho recuperado e de seguir em frente na vida.

Sobre as condições de trabalho, aqui no campo, estamos na estaca zero, conforme podem ver. Só temos espaço vazio: falta material. Se tivéssemos estaríamos melhor ainda,” concluiu.

 


Minha esposa é minha amiga

 

- Fernando Wassiquete de 69 anos

Há dois anos começou a fazer ginástica naquele local, para onde caminhava com ajuda de uma muleta. Passado um ano, largou a terceira perna” e já caminha sem ajuda, todas as manhãs, do bairro da Polana Caniço até ao Ferroviário e vice-versa.

Essa coisa de trombose chega com muita força, mas para recuperação leva seu tempo e exige dedicação”, comentou.

Com os filhos já casados, a morarem nas suas próprias casas, recebe cuidados da esposa, a quem cabe gerir e suprir as despesas da casa com o dinheiro que consegue vendendo verduras no mercado.

Não tenho amigos. A minha esposa é minha única amiga, e alguns colegas que também sofrem de trombose que conheci aqui no campo”, rematou.

 

Diminuí o peso

 

- Vicência Azarias de 46 anos

É a mais nova do grupo e sofre de diabetes. Começou a frequentar o local em Fevereiro deste ano, e diz que já perdeu pouco mais de cinco quilos.

Faço ginástica por recomendação médica. Quando cheguei aqui, estava mais gorda, mas em três meses consegui diminuir cinco quilos”, disse.

Acrescentou que fazer ginástica com um grupo composto por pessoas mais velhas e, mais do que isso, ver pessoas que não andavam a recuperar os movimentos é uma grande motivação.   “Faz-me crer que também sou capaz”.

 

A viver nova realidade

 

- Julião Rafael Machava

Homem de poucas palavras e um caminhar esforçado, chama alguma atenção pelo facto de ainda não conseguir entrar no ritmo do grupo. Ainda tem muitas dificuldades para se sentar e levantar.

A trombose antecipou-lhe a reforma: teve que arrumar os seus conhecimentos e experiência como engenheiro de mecânica hidráulica para se dedicar à recuperação dos movimentos paralisados pela doença.

De qualquer modo, reconhece que “é preciso ter muita paciência, a melhoria  não é imediata. Acontece milímetro a milímetro”.

Machava disse que com a doença tudo mudou na sua vida, que vive uma nova era: “já não penso naquilo que eu era antes. Agora estou a viver a realidade: sou outra personagem”.

 

2 comentários:

  1. A iniciativa é de louvar, tenho meu pai,reside no bairro ferroviário, recentemente sofre Avc e gostaria que fizesse parte dessa associação

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  2. A iniciativa é de louvar...tenh meu pai que sofre de avc, recentimente, e gostaria que fizesse parte dessa associação..como faco?

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